O POEMA
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os braços de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas,
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo, o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
(A Colher na Boca – 1961)
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Herberto Hélder
(1930-2015)
AI COMO CUSTA ENTENDER
Porque é que a vida nos nega
Aquela total entrega
De que tanto precisamos
Porque nos nega os caminhos
E nos faz ficar sozinhos
Meu amor se nos amamos
Se não nos cabe na boca
Esta loucura tão louca
Que nos enche e nos abraça
De que nos serve viver
Se andamos a morrer
A cada instante que passa
Se o próprio corpo nos pede
Que lhe matemos a sede
No rio dos nossos beijos
Qu’importam as nossas vidas
Se somos aves perdidas
No céu dos nossos desejos
Meu amor a quem eu quero
Porque quem vivo e desespero
Tão perto e longe de ti
Ai como custa entender
E pensar que vou morrer
Sabendo que não vivi
In “Os meus fados são teus fados”
Seda Publicações
Fernando Campos de Castro
(N.1952)
NOITE VAZIA
Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.
Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.
Florida e ondulada suspensão da mágoa.
As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adivinhada.
O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausência do espaço.
E a morte espreitando a lentidão
irradia baçamente a sua despedida.
Noite vazia.
As aves brancas do cérebro
inutilmente abatem as suas asas!
1934
In Revista “Pirâmide”
Nº 3 – Dezembro.1960 – Ano I
Pág. 44
Edmundo de Bettencourt
(1889-1973)
AMOR À VISTA
Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.
Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.
Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.
Mas o mar e os montes...
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.
Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.
Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.
Mar e montes teus beijos, meu amor!...
In “Poesia 1956-1979”
Edições Afrontamento
Fernando Echevarria
(1929-2021)
CORAÇÃO HABITADO
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de deus
– eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
In “Até Amanhã” 1956
Guimarães Editores
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
ATÉ QUE UM DIA...
Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.
Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.
E a festa continua... é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,
o gosto a mar, a lágrimas, a sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.
In "E Eu, Saudosa, Saudosa" - 1973
Fernanda de Castro
(1900-1994)
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