Quarta-feira, 31 de Agosto de 2022

Recordando... Herberto Hélder

O POEMA

 

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os braços de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

 

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
e a miséria dos minutos,
e a força sustida das coisas,
e a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo, o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

 

(A Colher na Boca – 1961)

 

In “Ler Por Gosto”

Areal Editores

 

Herberto Hélder

(1930-2015)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quinta-feira, 25 de Agosto de 2022

Recordando... Fernando Campos de Castro

AI COMO CUSTA ENTENDER

 

Porque é que a vida nos nega

Aquela total entrega

De que tanto precisamos

Porque nos nega os caminhos

E nos faz ficar sozinhos

Meu amor se nos amamos

 

Se não nos cabe na boca

Esta loucura tão louca

Que nos enche e nos abraça

De que nos serve viver

Se andamos a morrer

A cada instante que passa

 

Se o próprio corpo nos pede

Que lhe matemos a sede

No rio dos nossos beijos

Qu’importam as nossas vidas

Se somos aves perdidas

No céu dos nossos desejos

 

Meu amor a quem eu quero

Porque quem vivo e desespero

Tão perto e longe de ti

Ai como custa entender

E pensar que vou morrer

Sabendo que não vivi

 

In “Os meus fados são teus fados”

Seda Publicações

 

Fernando Campos de Castro

(N.1952)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 19 de Agosto de 2022

Recordando... Edmundo de Bettencourt

NOITE VAZIA

 

Crescimento do silêncio a devorar as nuvens.

Voo incansável e monótono das aves brancas do cérebro.

Florida e ondulada suspensão da mágoa.

As ferocidades são ternuras desmaiando na estepe adivinhada.

O amor abre goelas bocejantes nos côncavos da ausência do espaço.

E a morte espreitando a lentidão

irradia baçamente a sua despedida.

 

Noite vazia.

 

As aves brancas do cérebro

inutilmente abatem as suas asas!

 

1934

 

In Revista “Pirâmide”

Nº 3 – Dezembro.1960 – Ano I

Pág. 44

 

Edmundo de Bettencourt

(1889-1973)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sábado, 13 de Agosto de 2022

Recordando... Fernando Echevarria

AMOR À VISTA

 

Entras como um punhal

até à minha vida.

Rasgas de estrelas e de sal

a carne da ferida.

 

Instala-te nas minas.

Dinamita e devora.

Porque quem assassinas

é um monstro de lágrimas que adora.

 

Dá-me um beijo ou a morte.

Anda. Avança.

Deixa lá a esperança

para quem a suporte.

 

Mas o mar e os montes...

isso, sim.

Não te amedrontes.

Atira-os sobre mim.

 

Atira-os de espada.

Porque ficas vencida

ou desta minha vida

não fica nada.

 

Mar e montes teus beijos, meu amor,

sobre os meus férreos dentes.

Mar e montes esperados com terror

de que te ausentes.

 

Mar e montes teus beijos, meu amor!...

 

In “Poesia 1956-1979”

Edições Afrontamento

 

Fernando Echevarria

(1929-2021)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 7 de Agosto de 2022

Recordando... Eugénio de Andrade **

CORAÇÃO HABITADO

 

Aqui estão as mãos.

São os mais belos sinais da terra.

Os anjos nascem aqui:

frescos, matinais, quase de orvalho,

de coração alegre e povoado.

 

Ponho nelas a minha boca,

respiro o sangue, o seu rumor branco,

aqueço-as por dentro, abandonadas

nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

 

Alguns pensam que são as mãos de deus

– eu sei que são as mãos de um homem,

trémulas barcaças onde a água,

a tristeza e as quatro estações

penetram, indiferentemente.

 

Não lhes toquem: são amor e bondade.

Mais ainda: cheiram a madressilva.

São o primeiro homem, a primeira mulher.

E amanhece.

 

In “Até Amanhã” 1956

Guimarães Editores

 

Eugénio de Andrade **

(1923-2005)

 

** Pseudónimo de José Fontinhas

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Segunda-feira, 1 de Agosto de 2022

Recordando... Fernanda de Castro

ATÉ QUE UM DIA...

 

Meus versos eram rosas, lírios, heras,

borboletas, regatos, cotovias

cantando suas doces melodias,

anjos, sereias, ninfas e quimeras.

 

Meus versos eram pombas entre as feras

e, na festa das horas e dos dias,

ia dançando penas e alegrias

e o ano tinha quatro primaveras.

 

E a festa continua... é também festa

o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,

a chuva no beiral, o vento Norte,

 

o gosto a mar, a lágrimas, a sal,

até que um dia a vida, a bem ou mal,

exausta de cantar me empreste à morte.

 

In "E Eu, Saudosa, Saudosa" - 1973

 

Fernanda de Castro

(1900-1994)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... Ricardo Gil...

. Recordando... Saúl Dias *...

. Recordando... Ruy Belo

. Recordando... Rui Miguel ...

. Recordando... Rui Pires C...

. Recordando... Sebastião d...

. Recordando... Augusto Mol...

. Recordando... Egito Gonça...

. Recordando... António Ram...

. Recordando... Maria Auror...

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds