Quinta-feira, 30 de Junho de 2022

Recordando... Fernando Pessoa

HORA ABSURDA

 

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...

E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

 

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

 

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...

Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,

E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

 

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...

Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...

No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

 

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...

Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto

Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

 

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,

Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,

Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,

E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

 

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...

Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...

Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...

E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

 

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!

Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam

Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

 

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono

da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada

E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...

Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

 

A doida partiu todos os candelabros glabros,

Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...

E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...

E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

 

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar

Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido...

O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,

E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

 

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...

As próprias sombras estão mais tristes... Ainda

Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora

Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

 

Todos os casos fundiram-se na minha alma...

As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...

Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,

E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

 

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas

Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente

Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...

Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

 

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!

Todas as princesas sentiram o seio oprimido...

Da última janela do castelo só um girassol

Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

 

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...

Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...

Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...

Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

 

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te

E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...

Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te, 

E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

 

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...

Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque-

Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

 

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...

Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,

E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

 

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...

Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,

O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

 

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,

Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

Endireitar à força a curva dos horizontes,

E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

 

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...

Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem

O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

 

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...

Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,

E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

 

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

 

O que é que me tortura?...  Se até a tua face calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

 

04/07/1913

 

Cancioneiro

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”

3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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Sábado, 25 de Junho de 2022

Recordando... Ricardo Reis

AMO O QUE VEJO PORQUE DEIXAREI

 

Amo o que vejo porque deixarei

Qualquer dia de o ver.

Amo-o também porque é.

 

No plácido intervalo em que me sinto,

Do amar, mais que ser,

Amo o haver tudo e a mim.

 

Melhor me não dariam, se voltassem,

Os primitivos deuses,

Que também, nada sabem.

 

11-10-1934

 

In “Poemas de Ricardo Reis” 

Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte

Imprensa Nacional - Casa da Moeda - 1994

 

Ricardo Reis

 

Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)

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Domingo, 19 de Junho de 2022

Recordando... Alexander Search

O MUNDO

 

O mundo, tal como o entendo,

Não vai além daquilo que o cego

De cor e sombra pode encontrar

Na escuridão que é a sua sina;

          Este mundo, imenso e luzente,

          O qual nós viemos herdar

          Com um orgulho inconsciente,

Vale tanto quanto as nossas rimas

E haveres, sua lama dourada —

Nada, é o mais que dele vou falar

E aqui, no leito do nada,

Para o outro lado vou-me voltar.

 

1907

 

In “Poesia”

Edição e tradução de Luísa Freire

Assírio & Alvim – 1999

 

Alexander Search

 

Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)

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Segunda-feira, 13 de Junho de 2022

Recordando... Fernando Pessoa

FOI UM MOMENTO

 

Foi um momento

O em que pousaste 

Sobre o meu braço,

Num movimento 

Mais de cansaço 

Que pensamento,

A tua mão

E a retiraste.

Senti ou não?

 

Não sei. Mas lembro

E sinto ainda 

Qualquer memória

Fixa e corpórea 

Onde pousaste

A mão que teve

Qualquer sentido

Incompreendido.

Mas tão de leve!...

 

Tudo isto é nada,

Mas numa estrada 

Como é a vida 

Há muita coisa 

Incompreendida...

 

Sei eu se quando 

A tua mão

Senti pousando 

Sobre o meu braço,

E um pouco, um pouco,

No coração,

Não houve um ritmo

Novo no espaço?

 

Como se tu, 

Sem o querer,

Em mim tocasses

Para dizer

Qualquer mistério,

Súbito e etéreo,

Que nem soubesses

Que tinha ser.

 

Assim a brisa

Nos ramos diz

Sem o saber

Uma imprecisa 

Coisa feliz.

 

Cancioneiro

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” - 3ª. Edição

Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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Terça-feira, 7 de Junho de 2022

Recordando... Alberto Caeiro

QUANDO EU NÃO TE TINHA

 

Quando eu não te tinha

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora amo a Natureza

Como um monge calmo à Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais comovida e próxima…

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor—

Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Porque ainda o sou.

 

6-7-1914

 

“O Pastor Amoroso” 

 

In “Poemas de Alberto Caeiro”

(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor)

Ática, 1946 (10ª ed. 1993)

 

Alberto Caeiro

 

Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)

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Quarta-feira, 1 de Junho de 2022

Recordando... Álvaro de Campos

VENDI-ME DE GRAÇA AOS CASUAIS DO ENCONTRO

      

Vendi-me de graça aos casuais do encontro.

Amei onde achei, um pouco por esquecimento.

Fui saltando de intervalo em intervalo

E assim cheguei a onde cheguei na vida.

Hoje, recordando o passado

Não encontro nele senão quem não Fui...

A criança inconsciente na casa que cessaria,

A criança maior errante na casa das tias já mortas,

O adolescente inconsciente ao cuidado do primo padre tratado por tio,

O adolescente maior enviado para o estrangeiro (mania do tutor novo).

O jovem inconsciente estudando na Escócia, estudando na Escócia...

O jovem inconsciente já homem cansado de estudar na Escócia.

O homem inconsciente tão diverso e tão estúpido de depois...

Não tendo nada de comum com o que foi,

Não tendo nada de igual com o que penso,

Não tendo nada de comum com o que poderia ter sido.

Eu...

Vendi-me de graça e deram-me feijões por troco

Os feijões dos jogos de mesa da minha infância varrida.

 

19-7-1930

 

In “Álvaro de Campos - Livro de Versos” 

Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes

Editora Estampa -1993

 

Álvaro de Campos

 

Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)

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