CÂNTICO AO AMANHECER
Eu já não sou aquele frágil ser
que morria de angústia e desespero
por ir vogando, vogando sem rumo,
vogando, vogando na corrente da vida
para a morte…
Chocada,
magoada,
sensitiva…
Que formosura na sombra do mundo amanheceu,
que perfume de primavera estua nos caminhos,
que tudo se transforma
e acorda em sobressalto!
Eu dei as minhas mãos às mãos que vi estendidas,
juntei a minha voz ao cântico do amanhecer,
que reboa comovidamente
pleno de esperança e juventude,
e confundi meu coração
com os de todos os irmãos da minha humanidade.
E o frágil ser,
Chocado, magoado, sensitivo,
Morreu…
E só então pude exclamar:
Vida, vida, como eu te atraiçoava,
esperando tudo de ti
sem nada de mim te dar!
Na sombra do mundo estua a primavera
como sinal de um cântico que amanheceu!
In “Poemas da Hora Presente”
Lília da Fonseca
(1916-1991)
RECORDAÇÕES
Nenhum vestígio
Nenhuma noite impura
Nenhum país de lume
Nenhuma serra ali.
A tua ausência é tão funda
Que não regressa a ti.
In “Coração dos relógios”
Editora Pergaminho
Maria Azenha
(N.1945)
DESLIZAR PARA O POEMA E FICAR DE PÉ
Deslizar para o poema e ficar de pé,
imóvel sobre as imagens unicolores
dos cansaços,
deslembrados frutos e festas
de junhos calcinados em dispersão
pelas mãos. E os ouvidos atentos
ao murmúrio crescente da noite.
Não fosse oásis o teu olhar,
Cama, teus braços de amparar,
almofada de penas o teu peito.
Não fosses igual a um poema que
nos conduz ao carmim da tarde. Suavemente.
À casa onde se retoma pelos sentidos
na barca perene da memória,
a mesma de ontem, de hoje,
de amanhã ...
Não se ensombre o mar em olhos fatigados.
In “Garças”
Poética Edições
Lídia Borges **
(N.1956)
** Pseudónimo de Olívia Maria Barbosa Guimarães Marques
QUANDO ME BEIJAS
Quando me beijas, sinto o teu olhar
Por vezes vago, estranho, indiferente,
E até já fui forçada a reparar
Que me não olhas franca, lealmente.
Qualquer coisa tu tens p’ra me ocultar
Uma razão existe, certamente.
Repara amor, como eu, p’ra te beijar
Olho bem os teus olhos frente a frente.
E quando emfim, as nossas duas bocas
Se unem famintas como duas loucas
E vêjo então o quanto me desejas,
Fico absorta e penso entristecida,
Em quem será essa desconhecida
Que tu estás a beijar, quando me beijas.
(Intimidade)
In “Poetisas de Hoje”
Editora Empreza do Díarío de Notícias - 1931
Alice Ogando
(1900-1981)
A ESTÁTUA
O teu corpo branco e esguio
Prendeu todo o meu sentido...
Sonho que pela noite, altas horas,
Aqueces o mármore frio
Do alvo peito entumecido...
E quantas vezes pela escuridão
A arder na febre de um delírio,
Os olhos roxos como um lírio
Venho espreitar os gestos que eu sonhei...
- Sinto os rumores duma convulsão,
A confessar tudo que eu cismei
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
Num tormento,
A singular razão dos meus cuidados
In "Noite luarenta" 1922
Judith Teixeira **
(1880-1959)
** Pseudónimo de Judite dos Reis Ramos Teixeira
TENTO EMPURRAR-TE DE CIMA DO POEMA
Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.
Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir…
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?
E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?
Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
In “Coisas de Partir”
Fora do Texto
Ana Luísa Amaral
(N.1956)
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