A TERCEIRA MISÉRIA É ESTA...
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
In “A Terceira Miséria”
Relógio d’Água - 2012
Hélia Correia
(N.1949)
VIAGEM
Com um sobressalto cessa o realejo…
Outra vez o pequeno quarto, outra vez as paredes,
as sujas paredes albergando objectos familiares
de utilidade definida, visíveis a olho nu.
Outra vez tudo como antes da viagem. Agora
a, escada de corda atravessou a clarabóia,
parou no meio do quarto, desci por ela – Aqui estou!
A mulher que se desprende de mim e se levanta
é uma estranha e nua criatura… De onde a recordo?
Um odor irritante apossa-se do ar,
um odor acre sem nada de sobrenatural
mas que dissolve a escada de corda como um ácido.
Tudo está completo dentro da sua dimensão;
vem de longe o eco de risos e de vozes;
o sonho está cicatrizado. A mulher atravessa o quarto
e grita para além da porta, numa estridência aguda:
– ÁGUA.
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
1.º Fascículo - Outubro de 1951
Pág. 58
Egito Gonçalves
(1920-2001)
ERA UMA PEDRA FEMININA
Era uma pedra feminina
muito perto de uma pedra bem masculina
onde
a todo o comprimento do mastro
batiam os dentes das aves.
E o que restava das mãos mais antigas
pedia ainda dinamite
talheres avulso
mastodontes inviolados
alguns jovens em renda para bordar as estradas
hastes primaveris correndo o risco de se tornarem de bronze
acenando
a uma paisagem
hexagonal
maior que a soma de todas as janelas.
In “Obra Poética”
Porto Editora
Artur do Cruzeiro Seixas
(1920-2020)
Portugal
PESAM SOBRE MIM
Pesam sobre mim
séculos de silêncio e tradição
Pesam sobre mim
recordações enigmas
Pesam sobre mim
séculos de poemas
oblações paradigmas
Pesam sobre mim
esses lugares de origem
antiquíssimos eternos
subterrâneos dizem,,,
Sobre mim
na paz vingada dos mortos
Pesam séculos absortos
séculos.
In “Antologia de Poetas Figueirenses (1875-2013)”
Carlos Carranca
(N.1957)
POEMA DO HOMEM SÓ
Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem,
Os astros não se explicam:
arrefecem.
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta
nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços,
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém.
(Teatro do Mundo)
In “Obra Completa de António Gedeão”
Editor Relógio d'Água
António Gedeão **
(1906-1997)
** Pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Ricardo Rei...
. Recordando... Victor Oliv...
. Recordando... José Terra ...
. Recordando... Ana Luísa A...
. Recordando... Miguel Alme...
. Recordando... Lília da Fo...
. Recordando... Alexandre O...
. Recordando... Camilo Pess...