MONOTONIA
Começar, recomeçar, interminamente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes,
insistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver...
Andar como os dementes pelos cantos a repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.
Monotonia. Arte, vida...
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.
In “Um dia e outro dia… Outono havias de vir”
Editorial Presença
Irene Lisboa
(1892-1958)
NÃO SEI, AMOR, SEQUER, SE TE CONSINTO
Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.
Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas
outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,
o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.
In «Tábua das Matérias - Poesia 1956-1991»,
Tertúlia - 1991
Pedro Tamen
(1934-2021)
RECADO
Se eu morrer longe
sepulta-me no mar
dentro das algas ignorantes
e lúcidas.
Cobre o meu rosto de palavras
antigas
e de música.
Deixa em meus dedos
a memória mais recente
de outras coisas inúmeras
e nos meus cabelos
o incerto movimento
do vento e da chuva.
Eu vogarei sob as estrelas
com pálidas luzes entre os cílios
e pequenos caramujos
entrarão nos meus ouvidos.
Estarei assim idêntica
a todos os motivos.
In “Música Ausente”
Glória de Sant'Anna
(1925-2009)
REPETIÇÃO DO DESERTO
Atravessar o deserto em círculos incandescentes
repeti-lo até à proximidade do que se anula
é dar-lhe um rosto.
Não a pura evanescência do visível
a floração que se espera de um olhar
mas uma imagem pobre ancorada no silêncio
esse rosto volta-se no mesmo movimento
que o encerra na distância.
O que fizemos dele arrasta-se como o mar
prematuramente inclinado sobre o chão
o rosto é um feixe de memória seca
é assim que o deserto reflecte as cidades
sem a consciência aquática
das coisas intocadas.
In "Animais da Terra"
Editora Limiar
Rosa Alice Branco
(N.1950)
ANTÓNIO, É PRECISO PARTIR!
António, é preciso partir!
O moleiro não fia,
a terra é estéril,
a arca vazia,
o gado minga e se fina.
António, é preciso partir!
A enxada sem uso,
o arado enferruja,
o menino quer pão, a tua casa é fria.
É preciso emigrar!
O vento anda como doido – levará o azeite;
a chuva desata noite e dia – inundará tudo;
e o lar vazio,
o gado definhando,
a morte e o frio por todo o lado,
só a morte, a fome e o frio por todo o lado, António!
É preciso embarcar!
Badalão! badalão! – o sino!
já chora a despedida.
Os juros crescem;
o dinheiro e o rico não têm coração.
E as décimas, António?
Ninguém perdoa – que mais para vender?
Foi-se o cordão,
foram-se os brincos,
foi-se tudo!
A fome espia o teu lar.
Para quê lutar com a braveza da terra,
com a indiferença do Céu,
com tudo, com a morte, com a fome, com a terra,
com tudo!
Árida, árida a vida.
António, é preciso partir!
António partiu.
E em casa, tudo ficou sem jeito, desamparado, vazio.
Ficou a solidão.
In “As Frias Madrugadas”
Fernando Namora
(1919-1989)
TESTAMENTO
Se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
Será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.
Se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.
Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.
Se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,
pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que me não repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito.
In "Memória Consentida: 20 Anos de Poesia 1959-1979"
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Rui Knopfli
(1932-1997)
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