A FLOR DA SOLIDÃO
Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário silencioso
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem bem saber que em tudo um pouco nós morremos.
In “Obra Poética I”
Ed. Presença - 1990
Ruy Belo
(1933-1978)
FAZER AMOR É SEMPRE TÃO COMPLEXO
Fazer amor é sempre tão complexo
e tão simples também que às vezes pasmo
dos traumas que alguns têm com o sexo
e dos que não tiveram um orgasmo.
Não sabem o que perdem uns e outros
e o que fazem, enfim, é perder tempo.
Acordam vivos, vivem quase mortos
como troncos sem seiva e sem rebentos.
Ajuda-os, Senhor, nessa agonia,
ajuda-os a pôr a escrita em dia,
que a ponta não lhes ceda nem se mude.
Já que falo contigo, meu Senhor,
ajuda-me hoje à noite no amor
que ontem não fiz mais porque não pude.
In “Sonetos Eróticos & Irónicos & Satíricos & De Amor
& Desamor & De Bem & De Maldizer Do Poeta”
Litexa Editora
Joaquim Pessoa
(N.1948)
FALSOS AMIGOS
Tenho amigos que pensam confundir-me
igualando a loucura à minha ânsia.
Pobrezitos!, que tentam destruir-me
havendo de permeio esta distância.
Eu tenho pena de não ser um deles,
ao menos uma vez, por uns momentos.
Gostava de morrer um dia neles,
ressuscitando nos seus pensamentos.
Pintar-lhes-ei um dia o rosto a sério,
com talento nascido de neurose
que faça vê-los nus no baptistério
onde lavam a alma da esclerose?
Toda a gente rirá desse retrato,
e haverá certamente prò comprar
um novo-rico que lhe admire o fato
e o pendure na sala de jantar.
Hei-de pôr-Ihes uns olhos que reluzam,
mas vazios nas órbitas repletas,
profanação nos dedos que se cruzam,
num indigno repouso de poetas.
Ah, são eles que procuram destruir-me,
criticando-me as faces controversas!,
mas apenas conseguem reunir-me
nas mil forças que tenho bem dispersas.
In "Poemas Vários (1950-1975)"
Isabel Gouveia **
(N.1930)
** Nome literário de Isabel Pereira Mendes
LEMBRANÇAS
Chorar pelos vivos que falecem
é natural – coisa lacrimal.
A carne sente a falta do costume
às tantas … tem fome.
Não choro ninguém.
Quando digo chorar é outra pressa
de chegar a tempo
da conversa atenta com um amigo
que nos quer bem.
Chorar por ninguém é chorar pelos vivos
que já morreram, sem o saber,
e vivem no seu presídio.
O resto, repito, é fisiologia
provocada, e ainda bem, pelo riso,
ou pela dor que temos de já ter nascido
e sermos chorados por alguém.
In “Cem Poemas Portugueses do Adeus e da Saudade”
Ruy Cinatti
(1915-1986)
ENQUANTO DORMIAS…
enquanto dormias coloquei o teu corpo sobre o mar
e atravessei o quarto e um pequeno-almoço de laranjas junto à janela
e de jornais pelo chão
pelo corredor
enquanto o teu corpo continuava a boiar
sobre a cama.
os órgãos
mantêm o corpo na linha espelhada da superfície
no equilíbrio entre os pulmões que querem regressar ao ar de
que são feitos e o coração
que é de água e quer mergulhar
arrastando tudo para as profundezas do mar e da consciência.
enquanto dormias despenharam-se
três cometas sobre o estábulo do rio
revolvendo as águas
(talvez fosse eu que boiasse e tu que me
observasses do cimo das águas e através da linha de mercúrio).
e resolvi partir
para fundar outra cidade.
uma intuitiva lei de equivalências transporta-me
do ondular do teu peito para a respiração do mar
no teu corpo adormecido.
onde o nosso filho, que é ainda apenas
um plano feito ao jantar
com os pratos já vazios e os talheres faiscando prata entre restos de comida
cresce erguendo abóbadas sobre o lago em que se banha
dormindo no equilíbrio das águas.
são os teus pulmões que nos têm mantido à tona,
na superfície do espelho que
não pertence a nenhum dos mundos a que serve de barreira
de refúgio.
enquanto dormias regressei
para te ver dormir.
In “Fórmulas”
Quasi Edições - 2004
Tiago Araújo
(N.1973)
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