UM SIMPLES PENSAMENTO
É a música, este romper do escuro.
Vem de longe, certamente doutros dias,
doutros lugares. Talvez tenha sido
a semente de um choupo, o riso
de uma criança, o pulo de um pardal.
Qualquer coisa em que ninguém
sequer reparou, que deixou de ser
para se tornar melodia. Trazida
por um vento pequeno, um sopro,
ou pouco mais, para tua alegria.
E agora demora-se, este sol materno,
fica comigo o resto dos dias.
Como o lume, ao chegar o inverno.
In “Os Sulcos da Sede”
Quasi Edições
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
NATAL
Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.”
In “Diário XV”
Coimbra Editora
Miguel Torga **
(1907-1995)
** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
ECO
Vagas são as promessas e ao longe,
muito longe, uma estrela.
Cruel foi sempre o seu fulgor:
sonâmbulas cidades, ruas íngremes,
passos que dei sem onde.
Era esse o meu reino, e era talvez essa
a voz da própria lua.
Aí ficou gravada a minha sede.
Aí deixei que o fogo me beijasse
pela primeira vez.
Agora tenho as mãos vazias,
regresso e sei que nada me pertence
– nenhum gesto do céu ou da terra.
Apenas o rumor de breves sombras
e um nome já incerto que por mágoa
não consigo esquecer.
In “Poemas Escolhidos”
Publicações Dom Quixote
Fernando Pinto do Amaral
(N.1966)
AMAR TEUS OLHOS
Podia com teus olhos
escrever a palavra mar.
Podia com teus olhos
escrever a palavra amar
não fossem amor já teus olhos.
Podia em teus olhos navegar
conjugar os verbos dar e receber.
Podia com teus olhos
escrever o verbo semear
e ser tua pele
a terra de nascer poema.
Podia com teus olhos escrever
a palavra além ou aqui
ou a palavra luar,
recolher-me em teus olhos de lua
só teus olhos amar.
Podia em teus olhos perder-me
não fossem, amor, teus olhos,
o tempo de achar-me.
In "Lavra de Amor"
Hugin Editores
Carlos Melo Santos
(N. 1956)
CONTIGO
Vivo a noite contigo
e juntos andamos
em quietude de seda.
Pele e vontade
corpo e verdade
um sal de ti.
Vivo a noite contigo
e vou pela quentura
do teu peito adormecido
até ao fim das estrelas.
In “Azul como o silêncio”
Chiado Editora
Edgardo Xavier
(N.1946)
ROMANCE DO RIO DOURO
Rio Douro, rio Douro,
que vais tu dizer ao mar
com cem palavras ferindo
um ovo que não se abre?
Teus dedos de névoa crescem,
desfibram-se pelo vale;
e uma rosa angustiada,
na areia do areal.
Rio Douro, rosa de água,
que tens tu para contar?
Rio, não fales de nós
ao senhor rei que é o mar:
ir falar a certa gente
é o mesmo que não falar.
Fala connosco, se és nosso,
revela o ovo da paz,
pondo-nos dentro da alma
as cidades de luar,
o mel dos favos da aurora,
laranjas do laranjal,
a doce força dos robles
cheios de sol e de sal,
que por mais que o vento vente,
resistem ao vendaval.
In "Os Homens Cantam a Nordeste"
Editora Nova Realidade
António Cabral
(1931-2007)
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