Segunda-feira, 30 de Novembro de 2020

Recordando... Sebastião da Gama

RESSURREIÇÃO

 

Que tristeza entristece a flor das águas?

Ó sereias do Mar, peixes humanos,

serão saudades vossas?

Ó sereias do Mar, que havia dantes,

quando os homens sabiam deslumbrar-se .. .

 

Se haverá Primavera no país

das algas, das anémonas...

Inútil primavera!... Quem viria

(as sereias morreram...) enfeitar-se

com as rosas marinhas?

 

Mas da noite do Mar eis se levantam

vultos de luz, etéreas esculturas.

Serão puros espíritos, mas sinto-as,

sua pele contra a minha, no meu corpo.

E um perfume de carne e maresia

me toma por inteiro, me transtorna

– casto, insistente, virgem, feminino.

 

Pela noite do Mar, inesperadas,

surgem vivas do mito que as encanta,

surgem, desencantadas, as sereias

– luas de carne enluarando a noite.

Abre-se a flor das águas como um lótus.

Conchinhas, algas, búzios, estremece-os

um frémito de gozo e de alegria.

Dançam de roda, infantilmente, os p eixes.

E as mãos do Poeta afogam-se de anémonas

primaverais, misteriosas, dignas

elas só do afago das sereias .. .

 

Arrábida, 3 e 4/IV/1950

 

(Poesia Inédita)

 

In “ÁRVORE ”

Folhas de Poesia

Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,

José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho

2.° Fascículo - Inverno ele 1951-52

Pág. 85/86

 

Sebastião da Gama

(1924-1952)

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Quarta-feira, 25 de Novembro de 2020

Recordando... Maria do Rosário Pedreira

SE PARTIRES, NÃO ME ABRACES...

 

Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta

uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.

 

Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão

das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

 

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém –longe de ti, o corpo não faz

senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta

as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto

espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.

 

Se me abraçares, não partas.

 

In “O Canto do Vento nos Ciprestes”,

Gótica - 2001

 

Maria do Rosário Pedreira

(N.1959)

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Quinta-feira, 19 de Novembro de 2020

Recordando... José Luís Peixoto

FICO ADMIRADO QUANDO ALGUÉM

 

fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre

sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.

eu sei exactamente o que é o amor. O amor é saber

que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.

o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte

de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.

o amor é ter medo e querer morrer.

 

In “A Criança em Ruínas”

 

José Luís Peixoto

(N.1974)

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Sexta-feira, 13 de Novembro de 2020

Recordando... Nicolau Tolentino de Almeida

O COLCHÃO DENTRO DO TOUCADO

 

Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a Mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.


A filha, moça esbelta e aperaltada
Lhe diz co´a doce voz que o ar serena:
“Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
Olhe não fique a casa arruinada …”


“Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?” E dizendo isto,

 

Arremete-lhe á cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.

 

In “Obras Completas”

Castro, Irmão& Cª – 1861

 

Nicolau Tolentino de Almeida

(1722-1804)

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Sábado, 7 de Novembro de 2020

Recordando... António Feijó

CISNE BRANCO

 

Cisne branco, esquecido a sonhar no alto Norte,

Vendo-se, ao despertar, das neves prisioneiro,

Ergue os olhos ao céu, enublados de morte,

Mas o sol já não vem romper-lhe o cativeiro.

 

O gelo, no lençol todo imóvel das ondas,

Em que a aurora boreal põe reflexos de brasas,

Deslumbra-lhe um momento as pupilas redondas,

Dá-lhe a ilusão do sol, mas não lhe solta as asas.

 

Vê que o torpor do frio o invade lentamente;

Debate-se, procura o cárcere romper;

Mas a asa é de arminho, o gelo é resistente:

Tem as penas em sangue e sente-se morrer.

 

Então põe-se a cantar sem que ninguém o escute;

Solta gritos de dor em que lhe foge a vida;

Mas essa dor, se ao longe um eco a repercute,

Parece uma canção no silêncio perdida…

 

Melodia que a voz da Saudade acompanha,

Amarga e triste como o exílio onde agoniza,

Longe do claro sol que outras paisagens banha,

Dos rios e do mar que outra alvorada irisa.

 

Voz convulsa a chorar perdidas maravilhas:

– Tardes ocidentais de sanguínea e laranja,

Noites de claro céu, como um mar cheio de ilhas,

Manhãs de seda azul que o sol tece e desfranja!

 

Mas ao longe, à distância onde a leva a Saudade,

Tão esbatida vai essa triste canção,

Que não desperta já comoção nem piedade:

Encanta o ouvido, mas não chega ao coração.

 

E o Cisne, abandonado ao seu destino, expira,

Alucinado e só, sob o silêncio agreste,

Pensando que no azul, como um mar de safira,

Os astros a luzir são a geada celeste…

 

In “Sol de Inverno”

INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda

 

António Feijó

(1859-1917)

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Domingo, 1 de Novembro de 2020

Recordando... Vasco Graça Moura

PRESENTE DO INDICATIVO

 

entro na cozinha. Ela está no meio dos legumes,

lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias

de oblonga contextura, corta a cebola às

rodelas, pica um ramo de coentros,

hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,

 

e prudente no azeite. O ovo cozido espera a sua vez e a

saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.

ela procura os talheres de madeira na gaveta,

pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.

a preparação da salada requer vários gestos precisos

 

e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos

paladares. pela janela chegam os ruídos da rua,

campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.

o cão dormita no sofá. Uns versos populares comparam

os olhos dela a azeitonas pretas.

 

In "Poesia 1993-1995"

Círculo de Leitores

 

Vasco Graça Moura

(1942-2014)

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