RESSURREIÇÃO
Que tristeza entristece a flor das águas?
Ó sereias do Mar, peixes humanos,
serão saudades vossas?
Ó sereias do Mar, que havia dantes,
quando os homens sabiam deslumbrar-se .. .
Se haverá Primavera no país
das algas, das anémonas...
Inútil primavera!... Quem viria
(as sereias morreram...) enfeitar-se
com as rosas marinhas?
Mas da noite do Mar eis se levantam
vultos de luz, etéreas esculturas.
Serão puros espíritos, mas sinto-as,
sua pele contra a minha, no meu corpo.
E um perfume de carne e maresia
me toma por inteiro, me transtorna
– casto, insistente, virgem, feminino.
Pela noite do Mar, inesperadas,
surgem vivas do mito que as encanta,
surgem, desencantadas, as sereias
– luas de carne enluarando a noite.
Abre-se a flor das águas como um lótus.
Conchinhas, algas, búzios, estremece-os
um frémito de gozo e de alegria.
Dançam de roda, infantilmente, os p eixes.
E as mãos do Poeta afogam-se de anémonas
primaverais, misteriosas, dignas
elas só do afago das sereias .. .
Arrábida, 3 e 4/IV/1950
(Poesia Inédita)
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
2.° Fascículo - Inverno ele 1951-52
Pág. 85/86
Sebastião da Gama
(1924-1952)
SE PARTIRES, NÃO ME ABRACES...
Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –
o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém –longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.
In “O Canto do Vento nos Ciprestes”,
Gótica - 2001
Maria do Rosário Pedreira
(N.1959)
FICO ADMIRADO QUANDO ALGUÉM
fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. O amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.
In “A Criança em Ruínas”
José Luís Peixoto
(N.1974)
O COLCHÃO DENTRO DO TOUCADO
Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a Mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.
A filha, moça esbelta e aperaltada
Lhe diz co´a doce voz que o ar serena:
“Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
Olhe não fique a casa arruinada …”
“Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?” E dizendo isto,
Arremete-lhe á cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.
In “Obras Completas”
Castro, Irmão& Cª – 1861
Nicolau Tolentino de Almeida
(1722-1804)
CISNE BRANCO
Cisne branco, esquecido a sonhar no alto Norte,
Vendo-se, ao despertar, das neves prisioneiro,
Ergue os olhos ao céu, enublados de morte,
Mas o sol já não vem romper-lhe o cativeiro.
O gelo, no lençol todo imóvel das ondas,
Em que a aurora boreal põe reflexos de brasas,
Deslumbra-lhe um momento as pupilas redondas,
Dá-lhe a ilusão do sol, mas não lhe solta as asas.
Vê que o torpor do frio o invade lentamente;
Debate-se, procura o cárcere romper;
Mas a asa é de arminho, o gelo é resistente:
Tem as penas em sangue e sente-se morrer.
Então põe-se a cantar sem que ninguém o escute;
Solta gritos de dor em que lhe foge a vida;
Mas essa dor, se ao longe um eco a repercute,
Parece uma canção no silêncio perdida…
Melodia que a voz da Saudade acompanha,
Amarga e triste como o exílio onde agoniza,
Longe do claro sol que outras paisagens banha,
Dos rios e do mar que outra alvorada irisa.
Voz convulsa a chorar perdidas maravilhas:
– Tardes ocidentais de sanguínea e laranja,
Noites de claro céu, como um mar cheio de ilhas,
Manhãs de seda azul que o sol tece e desfranja!
Mas ao longe, à distância onde a leva a Saudade,
Tão esbatida vai essa triste canção,
Que não desperta já comoção nem piedade:
Encanta o ouvido, mas não chega ao coração.
E o Cisne, abandonado ao seu destino, expira,
Alucinado e só, sob o silêncio agreste,
Pensando que no azul, como um mar de safira,
Os astros a luzir são a geada celeste…
In “Sol de Inverno”
INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda
António Feijó
(1859-1917)
PRESENTE DO INDICATIVO
entro na cozinha. Ela está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias
de oblonga contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo de coentros,
hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,
e prudente no azeite. O ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da salada requer vários gestos precisos
e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares. pela janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. Uns versos populares comparam
os olhos dela a azeitonas pretas.
In "Poesia 1993-1995"
Círculo de Leitores
Vasco Graça Moura
(1942-2014)
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