Segunda-feira, 31 de Agosto de 2020

Recordando... Inês Lourenço

MAMOGRAFIA DE MÁRMORE

 

Deliciam-me as palavras

dos relatórios médicos, os nomes cheios

de saber oculto e míticos lugares

como a região sacro-lombar ou o tendão de Aquiles.

 

Numa mamografia de rastreio,

a incidência crânio-caudal seria

um bom título para uma tese teológica.

 

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax

de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma

de Nemésio, para não referir os vermelhos de hemoptise

de Pessanha ou as engomadeiras tísicas

de Cesário.

 

Mas nenhum(a) falou (ou fala)

de mamografia de rastreio. Versos dignos

só os de mamilo róseo desde o tempo

de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite

enquanto deusa , só restaram óleos e

mamografias de mármore.

 

In “Coisa que Nunca”

Editora & etc

 

Inês Lourenço

(N.1942)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Terça-feira, 25 de Agosto de 2020

Recordando... António de Macedo Papança (Conde de Monsarás)

AS ARCAS DE MONTEMOR

 

Entre escombros, na rudeza

De vetusta fortaleza,

Batidas do vento agreste,

Empedernidas, cerradas,

Há duas arcas, pejadas

Uma de oiro, outra de peste.

 

Ninguém sabe ao certo qual

Das duas arcas encerra

O fecundo manancial

Que fartará de oiro a terra

Mesquinha de Portugal,

 

Ou qual, se mão imprudente

Lhe erguer a tampa funérea,

Vomitará de repente

A fome, a febre, a miséria,

Que matarão toda a gente!

 

E nestas perplexidades,

E eternas hesitações,

Têm decorrido as idades,

Têm passado as gerações;

Nas guerras devastadoras

Nas lutas brutais e ardentes

Entre as nações invasoras

E as povoações resistentes,

 

Nunca Romanos nem Godos,

Nem Árabes nem Cristãos,

Duros na alma e nos modos,

Rudes no aspecto e no trato,

Chegaram ao desacato

De lhes tocar pelas mãos...

 

Sempre que o povo faminto,

Maltrapilho e miserando,

Fosse ele Cristão ou Moiro,

Entrou no tosco recinto

Para salvar-se arrombando

A arca pejada de oiro,

 

Quedou-se, os braços erguidos,

O olhar atónito e errante,

Sem atinar de que lado

Vinha morrer-lhe aos ouvidos

Uma voz de agonizante,

Entre ameaças e gemidos:

«Ó povo de Montemor,

Se estás mal, se és desgraçado,

Suspende, toma cuidado,

Que podes ficar pior!»

 

E nestas perplexidades,

E eternas hesitações,

Hão-de passar as idades,

Suceder-se as gerações,

E continuar na rudeza

Da vetusta fortaleza,

Batidas do vento agreste,

Empedernidas, cerradas,

As duas arcas, pejadas

Uma de oiro, outra de peste.

 

In “Leituras (Segundo Tomo)”

Para o Ensino Técnico

1ª Edição - Livro Único

 

António de Macedo Papança

Conde de Monsarás

(1853-1913)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quarta-feira, 19 de Agosto de 2020

Recordando... Carlos Queirós

DESAPARECIDO

 

Sempre que leio nos jornais:

«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Embora sejam outros os sinais,

Suponho sempre que sou eu.

 

Eu, verdadeiramente jovem,

Que por caminhos meus e naturais,

Do meu veleiro, que ora os outros movem,

Pudesse ser o próprio arrais.

 

Eu, que tentasse errado norte;

Vencido, embora, por contrário vento,

Mas desprezasse, consciente e forte,

O porto do arrependimento.

 

Eu, que pudesse, enfim, ser eu!

- Livre o instinto, em vez de coagido.

«De casa de seus pais desapar’ceu...»

Eu, o feliz desaparecido!

 

In “Desaparecido e Outros Poemas”

Livraria Bertrand - 1950

 

Carlos Queirós

(1907-1949)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Quinta-feira, 13 de Agosto de 2020

Recordando... Luís Amaro

CANÇÃO EFÉMERA

 

Meu sonho dum momento

Que o engano teceu

E um imperceptível vento

Nas asas envolveu...

 

Nem fixei a imagem

Ora desfeita e vã:

Ondula na aragem,

Faz parte da manhã.

 

Quando passou seu rosto

Impressentido, breve,

Que a nuvem dum desgosto

Não fixou nem teve,

 

Logo uma luz ardente

Em minha alma nasceu:

Imagem finda, ausente,

Dum sonho que foi meu!

 

In “ÁRVORE ”

Folhas de Poesia

Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,

José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho

1.º Fascículo - Outono de 1951

Pág. 59

 

Luís Amaro

(1923-2018)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 7 de Agosto de 2020

Recordando... Gomes Leal

CARTA AO MAR

 

Deixa escrever-te, verde mar antigo,

Largo Oceano, velho deus limoso,

Coração sempre lyrico, choroso,

E terno visionario, meu amigo!

 

Das bandas do poente lamentoso

Quando o vermelho sol vae ter comtigo,

- Nada é mais grande, nobre e doloroso,

Do que tu, - vasto e humido jazigo!

 

Nada é mais triste, tragico e profundo!

Ninguem te vence ou te venceu no mundo!...

Mas tambem, quem te poude consollar?!

 

Tu és Força, Arte, Amor, por excellencia! -

E, comtudo, ouve-o aqui, em confidencia;

- A Musica é mais triste inda que o Mar!

 

(Mantém a grafia original)

 

In "Claridades do Sul"

 

Gomes Leal

(1848-1921)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sábado, 1 de Agosto de 2020

Recordando... António Gancho

PRISÃO

 

Tu tinhas uma nascença que era uma prisão

uma certeza de estar concreto e unido

com a matéria de pedra

Que era uma tua sedimentação de vida

uma tua construção de movimentos a sair das grades

Era rico em Sol o teu peito de grades

concreto e unido sedimentavas dias de espera

duma letra que te abrisse os instintos para

falares de nada.

Era uma certeza de tu estares unido como uma raiz de mesa própria

uma certeza de estares virado para um

nascente de inconcretidade material

tinhas uma mão de peça de artilharia

de disparares para fora o conteúdo dos dias com

raiz de mesa própria

Eras um sol a nascer-te no sítio da grade

onde se punham ramos de quinta-feira de campo.

Tinhas uma natureza de estares sentado

Sobre uma cadeira que era a tua

esperança de estares unido com a nascença do movimento.

Tinhas um cantarem-te os cabelos no dia de dentro

um ser-te uma mágica a fusão de

olhar com a dimensão de esperança fora.

Eras-te igual à matéria da tua animação de selva

íntima

igual ao cantar-te serôdio o tempo de pendular

na cabeça

Conhecias uma esperança de cortares os cabelos com uma

navalha de vento

mas era tua inspiração de um modo interior de vida.

Criavas um espaço aberto na clareira duma grade

que era um espaço celeste a cobrir de grego o cimento

Tu tinhas uma invenção de disparares saúde de dias

por fora da mão

Tu tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço

duma grade

tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia

inaugurado de verde

Que se te abrisse a letra

era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta

sem um rogar de branco.

O sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de ti

era nada de o poente estar no sentido inverso.

 

In “O Ar da Manhã”

Assírio & Alvim

 

António Gancho

(1940-2006)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Setembro 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30

.Ano XVII

.posts recentes

. Recordando... Branquinho ...

. Recordando... Carlos Ramo...

. Recordando... António Pin...

. Recordando... Sidónio Mur...

. Recordando... Margarida V...

. Recordando... Maria Velho...

. Recordando... Gil Vicente

. Recordando... Maria Irene...

. Recordando... Irene Silva

. Recordando... Ruy Cinatti

.arquivos

. Setembro 2024

. Agosto 2024

. Julho 2024

. Junho 2024

. Maio 2024

. Abril 2024

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds