MAMOGRAFIA DE MÁRMORE
Deliciam-me as palavras
dos relatórios médicos, os nomes cheios
de saber oculto e míticos lugares
como a região sacro-lombar ou o tendão de Aquiles.
Numa mamografia de rastreio,
a incidência crânio-caudal seria
um bom título para uma tese teológica.
Alguns poetas falam disso. Pneumotórax
de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma
de Nemésio, para não referir os vermelhos de hemoptise
de Pessanha ou as engomadeiras tísicas
de Cesário.
Mas nenhum(a) falou (ou fala)
de mamografia de rastreio. Versos dignos
só os de mamilo róseo desde o tempo
de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite
enquanto deusa , só restaram óleos e
mamografias de mármore.
In “Coisa que Nunca”
Editora & etc
Inês Lourenço
(N.1942)
AS ARCAS DE MONTEMOR
Entre escombros, na rudeza
De vetusta fortaleza,
Batidas do vento agreste,
Empedernidas, cerradas,
Há duas arcas, pejadas
Uma de oiro, outra de peste.
Ninguém sabe ao certo qual
Das duas arcas encerra
O fecundo manancial
Que fartará de oiro a terra
Mesquinha de Portugal,
Ou qual, se mão imprudente
Lhe erguer a tampa funérea,
Vomitará de repente
A fome, a febre, a miséria,
Que matarão toda a gente!
E nestas perplexidades,
E eternas hesitações,
Têm decorrido as idades,
Têm passado as gerações;
Nas guerras devastadoras
Nas lutas brutais e ardentes
Entre as nações invasoras
E as povoações resistentes,
Nunca Romanos nem Godos,
Nem Árabes nem Cristãos,
Duros na alma e nos modos,
Rudes no aspecto e no trato,
Chegaram ao desacato
De lhes tocar pelas mãos...
Sempre que o povo faminto,
Maltrapilho e miserando,
Fosse ele Cristão ou Moiro,
Entrou no tosco recinto
Para salvar-se arrombando
A arca pejada de oiro,
Quedou-se, os braços erguidos,
O olhar atónito e errante,
Sem atinar de que lado
Vinha morrer-lhe aos ouvidos
Uma voz de agonizante,
Entre ameaças e gemidos:
«Ó povo de Montemor,
Se estás mal, se és desgraçado,
Suspende, toma cuidado,
Que podes ficar pior!»
E nestas perplexidades,
E eternas hesitações,
Hão-de passar as idades,
Suceder-se as gerações,
E continuar na rudeza
Da vetusta fortaleza,
Batidas do vento agreste,
Empedernidas, cerradas,
As duas arcas, pejadas
Uma de oiro, outra de peste.
In “Leituras (Segundo Tomo)”
Para o Ensino Técnico
1ª Edição - Livro Único
António de Macedo Papança
Conde de Monsarás
(1853-1913)
DESAPARECIDO
Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar’ceu...»
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.
Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.
Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.
Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
- Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desapar’ceu...»
Eu, o feliz desaparecido!
In “Desaparecido e Outros Poemas”
Livraria Bertrand - 1950
Carlos Queirós
(1907-1949)
CANÇÃO EFÉMERA
Meu sonho dum momento
Que o engano teceu
E um imperceptível vento
Nas asas envolveu...
Nem fixei a imagem
Ora desfeita e vã:
Ondula na aragem,
Faz parte da manhã.
Quando passou seu rosto
Impressentido, breve,
Que a nuvem dum desgosto
Não fixou nem teve,
Logo uma luz ardente
Em minha alma nasceu:
Imagem finda, ausente,
Dum sonho que foi meu!
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa,
José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
1.º Fascículo - Outono de 1951
Pág. 59
Luís Amaro
(1923-2018)
CARTA AO MAR
Deixa escrever-te, verde mar antigo,
Largo Oceano, velho deus limoso,
Coração sempre lyrico, choroso,
E terno visionario, meu amigo!
Das bandas do poente lamentoso
Quando o vermelho sol vae ter comtigo,
- Nada é mais grande, nobre e doloroso,
Do que tu, - vasto e humido jazigo!
Nada é mais triste, tragico e profundo!
Ninguem te vence ou te venceu no mundo!...
Mas tambem, quem te poude consollar?!
Tu és Força, Arte, Amor, por excellencia! -
E, comtudo, ouve-o aqui, em confidencia;
- A Musica é mais triste inda que o Mar!
(Mantém a grafia original)
In "Claridades do Sul"
Gomes Leal
(1848-1921)
PRISÃO
Tu tinhas uma nascença que era uma prisão
uma certeza de estar concreto e unido
com a matéria de pedra
Que era uma tua sedimentação de vida
uma tua construção de movimentos a sair das grades
Era rico em Sol o teu peito de grades
concreto e unido sedimentavas dias de espera
duma letra que te abrisse os instintos para
falares de nada.
Era uma certeza de tu estares unido como uma raiz de mesa própria
uma certeza de estares virado para um
nascente de inconcretidade material
tinhas uma mão de peça de artilharia
de disparares para fora o conteúdo dos dias com
raiz de mesa própria
Eras um sol a nascer-te no sítio da grade
onde se punham ramos de quinta-feira de campo.
Tinhas uma natureza de estares sentado
Sobre uma cadeira que era a tua
esperança de estares unido com a nascença do movimento.
Tinhas um cantarem-te os cabelos no dia de dentro
um ser-te uma mágica a fusão de
olhar com a dimensão de esperança fora.
Eras-te igual à matéria da tua animação de selva
íntima
igual ao cantar-te serôdio o tempo de pendular
na cabeça
Conhecias uma esperança de cortares os cabelos com uma
navalha de vento
mas era tua inspiração de um modo interior de vida.
Criavas um espaço aberto na clareira duma grade
que era um espaço celeste a cobrir de grego o cimento
Tu tinhas uma invenção de disparares saúde de dias
por fora da mão
Tu tinhas uma sensação absoluta de estares aberto com o espaço
duma grade
tinhas um ser-te grave o olhar para fora do dia
inaugurado de verde
Que se te abrisse a letra
era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta
sem um rogar de branco.
O sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de ti
era nada de o poente estar no sentido inverso.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
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