DE PAZ E DE GUERRA
Na mão serena que num gesto de onda
Em estátua musical o ar modela.
Na mão torcida que num frio de gelo
A parede do tempo em fundos gritos risca.
Na mão de febre que num suor de chama
Em cinzas vai tornando quanto toca.
Na mão de seda que num afago de asa
Faz abrir os sonhos como fontes de água.
Na tua mão de paz, na tua mão de guerra,
Se já nasceu amor, faz ninho a mágoa.
In “Os Poemas Possíveis”
Editorial Caminho
José Saramago
(1922-2010)
MUDAM-SE OS TEMPOS
Mudam-se os tempos mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades
diferentes em tudo da esperança;
do mal, ficam as mágoas da lembrança,
e do bem – se algum houve – as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto.
que já coberto foi de neve fria,
e em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mór espanto:
que não se mude já como soía.
In “Eu cantarei de Amor – Poesia Lírica de Camões”
Areal Editores
Luís Vaz de Camões
(1524-1580)
POSSE INTEMPORAL
Fazer amor contigo
não é espelhar teu corpo nu
no vítreo do meu espaço
não é sentir-me possuída
ou possuir-te
É ir buscar-te
ao abismo de milénios de existência
e trazer-te livre.
In “Amor no feminino”
Editora Fora do Texto
Manuela Amaral
(1934-1995)
FIM
Quando eu morrer
Batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes
Façam estalar no ar chicotes
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...
In “Athena – Revista de Arte”
N.º 2 - Novembro.1924
Pág. 46
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
ESTA GENTE
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
In "Geografia", de 1967,
Incluído em "Obra Poética",
Ed. Caminho, Lisboa, 2010
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
TRAZ-ME UM TEMPO
Traz-me um tempo sem mistério.
Um tempo sem mácula e límpido,
comigo sentado na soleira
por entre o zunido dos insetos
e a cantilena dos homens no lagar.
Devolve-me os gestos que julgava perdidos.
Não me fales de viagens!
De cidades onde não vivi,
dos corpos que consumiste
em aventuras mais ou menos frustradas,
quando eu nem miragem era.
Cala o que me desarma,
o que me avoluma o tédio:
a imagem desses bares onde bebias,
nessas noites em que tropeçavas noutros
e eu não passava de uma impossibilidade
a fermentar numa paisagem
antecipadamente derrotada.
Concede-me de novo esse tempo sem mistério,
um tempo cristalino,
um tempo de loucura e inocência,
um tempo de desejos transparentes,
de corpos ardentes e simples
como só as coisas puras conseguem ter.
In “Aquilo que não tem nome”
Editora Coisas de Ler
Victor Oliveira Mateus
(N.1952)
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