Quinta-feira, 30 de Abril de 2020

Recordando... Luís Pignatelli **

O QUE FICOU NO AR PARADO

 

O que ficou no ar parado

era um cristal partido

pela tua boca soprado

ou era um pássaro ferido

 

por uma seta lado a lado?

era uma rosa de frio

na solidão do teu vestido

do teu vestido rasgado

 

ou era um cavalo espantado

batendo os cascos de vidro

de encontro às grades do medo

o que ficou no ar parado?

 

In "Obra Poética"

Editora &etc

 

Luís Pignatelli **

(1935-1993)

 

** Pseudónimo de Luís Oliveira de Andrade

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Sábado, 25 de Abril de 2020

Recodando... Manuel Alegre

O CANTO E AS ARMAS

 

Canto as armas e os homens

as pedras os metais

e as mãos que transformando

se transformam. Eu canto

o remo e a foice. Os símbolos.

Meu sangue é uma guitarra

tangida pelo Tempo.

Canto as armas e as mãos.

E as palavras que foram

areias tempestades

minutos. E o amor.

E também a memória

do cravo e da canela.

E também a quentura

de outras mãos: terra e astros.

E também a tristeza

e a festa. O sangue e as lágrimas.

 

O vinho: puro arder.

E também a viagem:

navegação lavoura

indústria – esse combate.

Procurai-me nas armas

no sílex no barro.

Pedra: meu nome é esse.

E escreve-se no vento.

Canto o carvão e as cinzas

as gazelas e os peixes

na fogueira contínua

das cavernas. E a pele

do tigre sobre a pele

do homem. Eis meu rosto:

está gravado na rocha.

Procurai-me no fóssil

e no carvão. Meu rosto

é cinza e Primavera.

Canto as armas e os homens.

Porque a Tribo me disse:

tu guardarás o fogo.

E por armas me deu

o bronze das palavras.

Meu nome é flecha. E perde-se

no pássaro. Começa

meu canto onde começa

a construção. Pastores

do tempo são meus dedos.

 

Caçadores de coisas

impossíveis. Eu canto

os dedos que transformam

e se transformam. Canto

as marítimas mãos

de Magalhães. As mãos

voadoras de Gagárine.

 

Procurai-me no mar

procurai-me no espaço.

Estou no centro da terra.

Meu nome é cinza. E espalha-se

no vento. Sou adubo

fermentação floresta.

E cintilo nas armas

 

Canto as armas e o Tempo.

As minhas armas o

meu tempo. E desarmado

pergunto à flor pergunto

ao vento: vistes lá

o meu país? E o meu

país está nas palavras.

Porque a Tribo me disse:

tu guardarás o fogo.

E por armas me deu

esta espada este canto.

 

In “O Canto e as Armas”  

Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

(N.1932)

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Domingo, 19 de Abril de 2020

Recordando... José Gomes Ferreira

ENTREI NO CAFÉ COM UM RIO NA ALGIBEIRA

Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
– onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

 

In “Poesia III”

Portugália Editora

 

José Gomes Ferreira

(1900-1985)

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Segunda-feira, 13 de Abril de 2020

Recordando... Afonso Lopes Vieira

FLORES DO VERDE PINHO

 

Ó meu jardim de saudades,

Verde catedral marinha

E cuja reza caminha

Pelas reboantes naves…

 

Ai flores do verde pinho,

Dizei que novas sabedes

Da minha alma, cujas sedes

Me perderam no caminho!

 

Revejo-te e venho exangue;

Acolhe-me com piedade,

Longo jardim de saudade

Que me puseste no sangue.

 

Ai flores do verde ramo,

Dizei que novas sabedes

Da minha alma, cujas sedes

Ma alongaram do que eu amo!

 

- A tua alma em mim existe

E anda no aroma das flores

Que te falam dos amores

De tudo o que é lindo e triste.

 

A tua alma, com carinho,

Eu guardo-a e deito-a, a cantar,

Das flores do verde pinho

- Àquelas ondas do mar.

 

In “País Lilás, Desterro Azul”

Sociedade Editora Portugal-Brasil

 

Afonso Lopes Vieira

(1878-1946)

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Terça-feira, 7 de Abril de 2020

Recordando... Glória de Sant’Anna

POEMA AGRESTE

 

Não sei por que buscas palavras longas

para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes

para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes

em prender meus passos nesse limite.

 

In “Poemas do Tempo Agreste”

 

Glória de Sant’Anna

(1925 -2009)

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Quarta-feira, 1 de Abril de 2020

Recordando... Edmundo de Bettencourt

PAISAGEM VERDADEIRA

 

O verde tenro e vivo, de folhagem,

presépio dos meus sonhos, em menino,

pôs-se de luto a par do meu destino,

cego-me a vê-lo imagem de miragem.

 

Quando, iludido, o busco na ramagem,

já com seus tons mais brandos não atino.

E nesta escuridão, só me ilumino

vendo-o compor-me interior paisagem.

 

Paisagem de ouro verde, que de mim

sai alongada em foco para a terra,

a procurar vencer-lhe a cerração.

 

E onde num crepúsculo sem fim

tonta, a esperança, esvoaçando, erra

sobre torres de encanto e de traição!

 

In “Poemas de Edmundo de Bettencourt”

Assírio & Alvim

 

Edmundo de Bettencourt

(1889-1973)

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