DIAS MELHORES
A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.
In “Da Alma e dos Espíritos Animais”
Editora Campo das Letras
Rosa Alice Branco
(N.1950)
LEVA-LHE AS PALAVRAS O PENSAMENTO
Leva-lhe as palavras o pensamento, posto
nos vitrais sangrentos da catedral, quando
os lábios de Laura rezam. Na solene
fixidez do silêncio, entre as pedras erectas,
vindas do sol, as orações de Laura ateiam
o incêndio, devoram o coração
de Francesco. Dentro, em algum canto do coro,
cantam as musas. Sob o ruído atroante
das naves ao céu, na solene fixidez
do silêncio, vão as palavras fugindo,
linhas de luz e noite no novo vitral
de cores lunares, desenhado nas mãos
rígidas do poeta. O canto poderoso
repete a eterna impiedade do amor.
In “Nocturnidade”
Campo das Letras – 1999
Orlando Neves
(1935 -2005)
EIS-ME
Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente
In “Livro Sexto”
Assírio & Alvim
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
ÚLTIMO POEMA DO AMOR AUSENTE
Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes
A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros
«Tudo quando perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor
Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»
In “Poesia dos Dias Úteis”
Publicações Europa-América
Vasco Costa Marques
(1928-2006)
ENLEIOS
Que direi de enleios,
galanteios ternos
prematuro voo
da miragem tonta?
Onde estão represos
os murmúrios de água
deslizando lenta
no dossel dos montes?
Já não sinto as aves
nem sequer as penas
adejando soltas.
Quanto às águas sei
ir morrer de sede
mesmo vendo as fontes.
In “Périplo”
Edições Húmus - 2009
Edgar Carneiro
(1913-2011)
MUDANÇA DE ESTAÇÃO
Para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado
deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento
passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória
luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação
In “Horto de incêndio”
Assírio & Alvim
Al Berto **
(1848-1997)
** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares
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