DEFINIÇÃO
Quem esquece o amor, e o dissipa, saberá
que sentimento corrompe, ou apenas se o coração
se encontra no vazio da memória? O vento
não percorre a tarde com o seu canto alucinado,
que só os loucos pressentem, para que tu
o ignores; nem a sabedoria melancólica das árvores
te oferece uma sombra para que lhe
fujas com um riso ágil de quem crê
na superfície da vida. Esses são alguns limites
que a natureza põe a quem resiste à convicção
da noite. O caminho está aberto, porém,
para quem se decida a reconhecê-los; e os própnos
passos encontram a direcção fácil nos sulcos
que o poema abriu na erva gasta da linguagem. Então,
entra nesse campo; não receies o horizonte
que a tempestade habita, à tarde, nem o vulto inquieto
cujos braços te chamam. Apropria-te do calor
seco dos vestíbulos. Bebe o licor
das conchas residuais do sexo. Assim, os teus lábios
imprimem nos meus uma marca de sangue, manchando
o verso. Ambos cedemos à promiscuidade do poente,
ignorando as nuvens e os astros. O amor
é esse contacto sem espaço,
o quarto fechado das sensações,
a respiração que a terra ouve
pelos ouvidos da treva.
In "Um Canto na Espessura do Tempo"
Quetzal Editores
Nuno Júdice
(N.1949)
REVELAÇÃO
Tinha quarenta e cinco... e eu, dezasseis...
Na minha fronte, indómitos anéis
Vinham da infância, saltitando ainda.
Contavam dela: — Já falou a reis!
Tinha quarenta e cinco... e eu, dezasseis...
Formosa? Não. Mais que formosa: linda.
Seu olhar diz: Seja o que o Amor quiser
A verdade planta que os meus dedos tomem!
Pela última vez foste mulher...
E eu, pela vez primeira, fui um homem!
Pedro Homem de Mello
(1904-1984)
QUEM ME ROUBOU O TEMPO
Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia
In “Cem poemas de Sophia”
Org. de José Carlos de Vasconcelos
Edição de Visão - 2004
Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
NÓS OS VENCIDOS DO CATOLICISMO
Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana
Nós é que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos
Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana
Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»
In “Obra Poética”
Ruy Belo
(1933-1978)
PORQUE ME SINTO VIDA
Não me apago hoje...
Antes árvore vacilante ao vento
barco em tempestades mansas
campo de girassóis
Não me apago hoje...
Hoje sou construção
castelo feito quimeras
contidas numa só mão
Não me apago hoje...
antes onda que me navegue
mar de tantas descobertas
astrolábio dos meus lábios
Entranhar-me em mim
é sulcar-me oceano inteiro
sortilégio de madrugadas claras
e pecar em anoiteceres salgados
É ser maçã serpenteando a chuva
Gota de orvalho em uva
é ser pingo de mel
derramado em pétalas
Não me apago hoje
nem amanhã nem nunca...
Sonhar –me é ter-me
num corpo suplicando chama
e acesa quero arder
em cada aurora da vida
em cada acontecer.
In "Laços de luar e outras histórias"
Editora Edita-Me
Teresa Brinco de Oliveira
(N.1961)
A TEMPO
A tempo entrei no tempo,
Sem tempo dele sairei:
Homem moderno,
Antigo serei.
Evito o inferno
Contra tempo, eterno
À paz que visei.
Com mais tempo
Terei tempo:
No fim dos tempos serei
Como quem se salva a tempo.
E, entretanto, durei.
In “O Verbo e a Morte”
Moraes Editora
Vitorino Nemésio
(1901-1978)
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