MUITAS CIDADES VIU PELA ÚLTIMA VEZ
Muitas cidades viu pela última vez, mares
que sulcou, sentimentos que sentiu,
jardins onde esteve, bosques onde sonhou,
amores que recorda, ruas que pisou,
poemas que o possuíram, neves onde
se corroeu, corpos de que foi parte, céus
que desabaram, dores que sofreu, palavras
jamais lembradas, alegrias que perdeu
– fragmentos de vidas irrepetíveis, como
esses segundos que fogem quando fulgem
os olhos de Laura. Só o trabalho do corpo
rompe o hímen do inconsolável tempo perdido.
Reaprende Francesco a sede do instante, a vida
rápida na memória dos olhos de Laura.
In “Nocturnidade”
Campo das Letras – 1999
Orlando Neves
(1935 -2005)
MENINO
No colo da mãe
a criança vai e vem
vem e vai
balança.
Nos olhos do pai
nos olhos da mãe
vem e vai
vai e vem
a esperança.
Ao sonhado
futuro
sorri a mãe
sorri o pai.
Maravilhado
o rosto puro
da criança
vai e vem
vem e vai
balança.
De seio a seio
a criança
em seu vogar
ao meio
do colo-berço
balança.
Balança
como o rimar
de um verso
de esperança.
Depois quando
com o tempo
a criança
vem crescendo
vai a esperança
minguando.
E ao acabar-se de vez
fica a exacta medida
da vida
de um português.
Criança
portuguesa
da esperança
na vida
faz certeza
conseguida.
Só nossa vontade
alcança
da esperança
humana realidade.
In “Poemas para Adriano”
Manuel da Fonseca
(1911-1993)
É NO SUL ONDE ME DEMORO
É no sul onde me demoro.
Há uma varanda em frente onde espero o
entardecer,
essa hora mais lenta,
limiar da noite e do coração, quando soam os
punhais.
Estranhas são as nuvens deste céu litoral.
Passam, param,
soltam-se em intoleráveis figuras,
animais do vento, altíssima visão.
à esquerda é o caminho para o areal.
Do outro lado alguém toca,
os dedos ferem as cordas,
florescem as notas de um lamento distante.
Quantas noites estarei aqui,
nesta varanda do sul,
no entardecer destes países,
nas cordas de um cântico mortal?
In "Morrer no Sul"
Assírio & Alvim (1983)
José Agostinho Baptista
(N.1948)
ABERTURA
Eu abria o rádio
eu abria o aparelho
era uma flor branca que eu abria
de sopro
eu soprava e eu abria a flor
A flor tocava música com as várias mãos
das pétalas
A flor tocava uma simbolização dum tempo
caído podre de espera de cor branca
O tempo espera-se em pintar-se
de branco
para cegar uma cor
mas a minha flor abria-se de
pétalas
e as várias mãos escreviam um
piano por cima de teclas grãos vários
seguidos uns aos outros.
Era assim uma harmonia
entre flor
tempo a querer-se de cor branca em cegar
era assim umas teclas cantarem filhos de grãos
por dentro dos grãos mesmos
unidos que eram em dimensão de lado
era assim um cantar-me o tempo todo
não era assim um cantar-me o tempo todo
era assim um pairar-me
o tempo todo em Nijinsky
o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro
quando eu tinha aberta a cabeça que imagino
da música
Abria a pétala favorita do harém
onde no centro um sultão da flor
no centro que era o amarelo da flor
abria a pétala favorita da flor
e então
e era então que me soava dentro da manhã
do quarto
uma música desfibrada de tempo serôdio
como se tudo me fosse em longe
como se a música levasse longe
o céu.
In “O Ar da Manhã”
Assírio & Alvim
António Gancho
(1940-2006)
A MAIOR DOR HUMANA
(Na morte quase simultânea dos
dois filhos únicos de Teófilo Braga)
Que imensas agonias se formaram
Sob os olhos de Deus! Sinistra hora
Em que o homem surgiu! Que negra aurora,
Que amargas condições o escravizaram!
As mãos, que um filho amado amortalharam,
Erguidas buscam Deus. A Fé implora…
E o céu que respondeu? As mãos baixaram
Para abraçar a filha morta agora.
Depois, um pai que em trevas vai sonhando,
E apalpa as sombras deles onde os viu
Nascer, florir, morrer!... Desastre infando!
Ao teu abismo, pai, não vão confortos…
És coração que a dor empederniu,
Sepulcro vivo de dois filhos mortos.
(Grafia actualizada)
In “Nas Trevas”
Tavares Cardoso & Irmão - 1890
Camilo Castelo Branco
(1825-1890)
MORTE ÀS PALAVRAS
Tantas vezes que me apetece
matar as palavras ou
ficar quieta num canto à espera
que elas me matem.
Assassiná-las à paulada
é que era bom,
arrastá-las pelos cabelos,
arrancar-lhes os olhos,
as tripas, as guelras,
uma coisa de sangue e entranhas,
desentranhá-las de mim.
Tantas vezes me apetece
romper com as palavras,
deixar de ser servil e
pô-las ao meu serviço
e cuspir-lhes nos olhos
um desaforo qualquer,
dizer-lhes bem alto
para os vizinhos ouvirem:
“Ide para a frase que vos pariu
In “Geografias Dispersas”
Editora Edita-Me
Alexandra Malheiro
(N.1972)
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Carlos Ramo...
. Recordando... António Pin...
. Recordando... Sidónio Mur...
. Recordando... Margarida V...
. Recordando... Maria Velho...
. Recordando... Maria Irene...
. Recordando... João Rios *...