INÊS DE MANTO
Teceram-lhe o manto
para ser de morta
assim como o pranto
se tece na roca
Assim como o trono
e como o espaldar
foi igual o modo
de a chorar
Só a morte trouxe
todo o veludo
no corte da roupa
no cinto justo
Também como o choro
lhe deram um estrado
um firmal de ouro
o corpo exumado
O vestido dado
como o choravam
era de brocado
não era escarlata
Também de pranto
a vestiram toda
era como um manto
mais fina que a roupa
In “Barcas Novas”
Editora Ulisseia
Fiama Hasse Pais Brandão
(1938-2007)
GOZO E DOR
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.
Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.
In “Folhas Caídas – Livro Primeiro”
Almeida Garrett
(1799-1854)
INVERNO
Apagou-se a fogueira.
Que frio na lareira
Do coração!
Neva
Na solidão
Da vida.
E o vento traz e leva
Um recado de eterna despedida.
Amor! Amor!
Sei ainda o teu nome redentor,
Chamo ainda por ti a cada hora!
Arde outra vez em mim
Como ardias outrora,
Nos dias de ventura.
Não me deixes assim
Nesta algidez de morte prematura
Coimbra, 17 de Janeiro de 1978
In “Diário XIII”
Edições Dom Quixote
Miguel Torga **
(1907-1995)
** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
LITANIA
O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;
o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror,
são a grande razão, a única razão.
In “Até Amanhã”
Guimarães Editores
Eugénio de Andrade **
(1923-2005)
** Pseudónimo de José Fontinhas
NÃO SEI POR QUE RAZÃO O MUNDO SE INQUIETA
Não sei por que razão o mundo se inquieta
quando estamos sozinhos. Talvez não saiba
que esgotámos os olhos no rigor dos espelhos
e que, por isso, não somos capazes de traçar
um caminho senão para o evitarmos. Na verdade,
se cai a noite, estiolam-se as aventuras entre nós –
o teu silêncio respira longamente, às vezes
paira sobre as dunas do meu corpo a conspirar,
como um tear de nuvens a fiar tempestades
ou um vento salgado a prometer naufrágios;
mas nunca converte o assomo numa história.
Não sei porque se aflige tanto o mundo
se ficamos sozinhos. Talvez ignore
que nós não somos mar de nenhuma praia,
que escolhemos poupar às falésias as cicatrizes
das ondas; e tudo para não aprendermos
o verdadeiro nome das feridas.
In "Revista Relâmpago"
N.º 22 - Abril.2008
Edição da Fundação Luís Miguel Nava
Maria do Rosário Pedreira
(N.1959)
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