DE AMOR NADA MAIS RESTA QUE UM OUTUBRO
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
In “Poesia Completa”
Publicações Dom Quixote
Natália Correia
(1923-1993)
DIA DE NATAL
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
[Máquina de Fogo]
In "Poemas Escolhidos: Antologia Organizada pelo Autor"
Edições João Sá da Costa
Pág. 43/47
António Gedeão **
(1906-1997)
** Pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
NÃO ME DEIXES MORRER LONGE DO MAR
não me deixes morrer longe do mar
das vagas de palavras que me sussurras
quando fechas os olhos espraiando os lábios
e as tuas mãos são algas apetecidas
não me deixes morrer longe do mar
das asas aladas de pássaros vivos
que ecoam as noites em amor escritas
salgadas por temperos escondidos
não me deixes morrer longe do mar
das marés tão certas de incerteza
como a vida preceder o tempo
ou o horizonte ser infinito com rosto
não me deixes morrer longe... de ti
In “Segredos Tecidos à Mão”
Calçada das Letras
Margarida Vieira
RETRATO
Um silêncio, um olhar, uma palavra:
Nasceste assim na minha vida,
Inesperada flor de aroma denso,
Tão casual e breve...
Já te visionara no meu sonho,
Imagem de segredo, esparsa ao vento
Da noite rubra, delicada, intacta.
E pressentira teu hálito na 'Sombra
Que minhas mãos desenham, inquietas.
Existias em mim... O teu olhar
Onde cintila, pura, a madrugada,
Guardara-o no meu peito, ó invisível,
Flutuante apelo das raízes
Que teimam em prender-te, minha vida!
In “ÁRVORE ”
Folhas de Poesia
Direcção e Edição de António Luís Moita, António Ramos Rosa, José Terra, Luís Amaro, Raul de Carvalho
1.º Fascículo - Outono de 1951
Pág. 60
Luís Amaro
(N.1923)
FALEMOS
Falemos então de todas essas coisas a que nunca soubemos dar um nome.
Coisas como café e cerejas,
coisas como memórias do verão de ontem
e de tudo o que repousa já no ónix frio dos dias.
falemos não porque as vejamos,
porque as sentimos à vaga luz dos crepúsculos que morrem
e são para nós as florestas que passam velozes nos vidros do carro
e os silêncios dos faunos que atravessam os bosques e as ilusões
e as pequenas ondas que vêm desmaiar à praia
e as vozes antigas que ainda nos falam na alma coisas despercebidas
e as luas que havia no final do verão.
Falemos, para que de novo sejam
e de novo vivam.
Falemos, para que estejamos vivos.
In "Doze Poemas de Saudade"
4 Águas Editora
Fernando Cabrita
(N.1954)
CAMINHADA HERÓICA
Sim! É o Futuro a caminhar comigo
Por uma estrada plena de luar.
O Futuro, com as mãos cheias de trigo
E os olhos por chorar!
Levamos dentro em nós a chama de cem fés
Erguida de cem brasas
E a latejar ao ritmo das marés
E ao compasso das asas.
Irmãos! Sussurros de qualquer nascente!
Planuras de charneca e vastidões de mar:
Abri alas de Esperança à nossa frente,
Que nós vamos passar!
In “À Eterna Luz dos Infinitos Sóis”
Edição do Autor
Maria Helena **
(1906-1998)
** Nome literário de Maria Helena Duarte de Almeida
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