ROTA DE ÍTACA
Mas se tenho de partir que de novo eu parta
é talvez bem melhor do que ficarem
meus pés no cais chumbados em argola
meus olhos no horizonte ao sonho a velejar.
Que eu parta. E assuma o risco de partir
fender a bruma sobre este coração cerrada
colher num bojador espinhos perfumados
partir e não saber em que angra fundear.
Largar amarras. Ir decifrando
quantos portulanos na vida houver a decifrar.
E se no fim faltar o cais para a chegada
o mar também é terra onde morar.
In “Na Distância deste Tempo”
Edições Salamandra
Marcolino Candeias
(1952-2016)
TENHO SAUDADES DO CALOR Ó MÃE
Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis
Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto
Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes
Ó infinita ó infinita mãe
In "Dos Líquidos"
Fundação Manuel Leão - Porto
Daniel Faria
(1971-1999)
AQUÁRIO
Para que serve a Inquietação? Oh, alma inquieta
E em fogo!
Peixe vermelho do aquário
Que tem o mundo sem fim
Só na ilusão dos meus olhos!
Tenta varar a vida lado a lado,
E corta em frente
O aquário transparente…
Mas anda à roda, à roda,
Teimosamente à roda,
Inutilmente à roda,
Desesperado e iludido,
– Porque o mundo, adonde mora
Seu sonho, fica de fora
Do seu aquário de vidro…
In “A Alma e o Deserto”
Portugália Editora
Américo Cortês Pinto
(1896-1979)
POEMA À BOCA FECHADA
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
In “Os Poemas Possíveis”
Editorial Caminho
José Saramago
(1922-2010)
VAIDOSA
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.
Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.
Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.
E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.
Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes,
E possuis muito amor... muito amor próprio.
In “O Livro de Cesário Verde”
Cesário Verde
(1855-1886)
QUE VERGONHA, RAPAZES
Que vergonha, rapazes! Nós práqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no "diz que"
e a desnalgar a fêmea ("Vist'? Viii!")
Que miséria, meus filhos! Tão sem geito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
mas logo desço à rua, encontro o Roque
("O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!")
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:
você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, sr. O'Neill! E... as varizes?
In "De ombro na ombreira"
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Fernando As...
. Recordando... Carlos Camp...
. Recordando... Ivone Chini...
. Recordando... Edmundo de ...
. Recordando... Branquinho ...
. Recordando... Carlos Ramo...
. Recordando... António Pin...
. Recordando... Sidónio Mur...