NÃO É TARDE
O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes,
eu fecho mais a porta.
Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro
funciona! Poderoso combustível
é o corpo. Acende deste lado.
Ainda não é tarde, foi agora anunciado
pela rádio, são dezoito e vinte cinco.
Respira-nos, repara, a ilusão
de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despes,
vai perdendo o nosso número de telefone.
In “Ulisses já não mora aqui”
Editora & etc
José Miguel Silva
(N. 1969)
QUANDO EU FOR PEQUENO
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou
pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
In "O Livro Branco da Melancolia"
Quetzal Editores
José Jorge Letria
(N.1951)
UM VERSO VEM
Um verso vem. Calculo o peso da neblina
que envolve o seu teor, o preso ritmo
da esfera em movimento: cerro o olhar na alma tensa
que ao longo do percurso mais ensina. O verso
vem por si em si da imagem que vier
no imaginar do corpo em sua ascese leve, peso
de uma estrutura fina ao seu redor.
Um verso vem. O olhar na alma mais se inclina.
In “Livro de Receitas”
Campo das Letras - 2000
Luís Adriano Carlos
(N. 1959)
SE PENSO
Se penso,
em quem sou me estranho;
Se fico,
há sempre um sonho
amarfanhado no espírito;
Se fujo,
há sempre uma razão
que me alcança sobre o abismo.
E assim se me consome a vontade,
inutilmente.
In Revista “Pirâmide”
Nº 2 – Junho.1959 – Ano I
Pág. 22
Sena Camacho
O MAR MAR DE PESCAR
O mar mar de pescar
quase não há
Um destino de dor e de paixão
pão de pedra da fome
enreda lentamente o pescador
lentamente o consome
E face a esta morte anunciada
ao Velho do Restelo só lhe resta
pegar no seu bordão e na sacola
e ir pedir reforma antecipada
que para ele decerto
é coisa ainda mais amarga
do que pedir esmola
In “Algumas Trovas de Haver o Mar e um Post Scriptum”
Editora Campo das Letras
Vasco Costa Marques
(1928-2006)
PAIXÃO
Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.
Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.
Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.
In “Poemas de amor “
Antologia de Poesia Portuguesa
Org. Inês Pedrosa
Publicações Dom Quixote
Luís Miguel Nava
(1957-1996)
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