NÃO FORA O MAR!
Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.
Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.
Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.
Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.
Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.
Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.
Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.
Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,
Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.
In "Trinta e Nove Poemas"
Edições Ocidente - Editorial Império
Fernanda de Castro
(1900-1994)
AFIRMAÇÃO
A essência das coisas é senti-las
tão densas e tão claras,
que não possam conter-se por completo
nas palavras.
A essência das coisas é nutri-las
tão de alegria e mágoa,
que o silêncio se ajuste à sua forma
sem mais nada.
In “Um Denso Azul Silêncio”
Glória de Sant'Anna
(1925-2009)
CARTA A ÂNGELA
Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.
Os abismos das coisas, quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!
Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!
Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.
Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!
In “Trabalho Poético”
Assírio & Alvim
Carlos de Oliveira
(1921-1981)
O FESTIM
Uns atrás de outros, impertinentes,
(Que estranho mundo de fantasmas tão dif'rentes!)
Ei-los que surgem aos encontrões
No perturbado Mundo Interior...
Uns a puxar por mim aos repelões,
Outros suaves e alicientes
Com falsos gestos de amor...
Uns severos, irados,
Desvairados,
Outros grotescos, histriónicos...
E os mais trágicos de todos – quem diria! –
Os fantasmas irónicos
Da Alegria...
Insinuam-se gentis,
Com doces falas, música nos gestos,
Promessas de oiro, subtis,
E o riso
De quem traz dentro das mãos o Paraíso
E é só pedi-lo que é pra nós também...
Ah! Como são amigos! Quem não há-de
Abrir tranquilo a porta...
Sentá-los à sua mesa!
Beber o vinho ácido às canecas
E entorná-lo perfumado
Com manchas de rubim sobre as toalhas!...
E olhar as nódoas sobre o linho,
A sorrir,
Sem saber distinguir
Se é sangue ou vinho!
Quebrar as taças e julgar que o ruído
Das lágrimas cortantes das estilhas
São risos claros de cristal...
E coroar a fronte no banquete
Com as coroas de rosas que nos dão,
Sem perceber que as rosas caem, ficam espinhos...
E à saída
Acompanhá-los pelas ruas, a cantar,
E deixar-se arrastar
Indefeso e sozinho,
Como se fosse, ao cabo do caminho,
Ali mesmo o Céu aberto...
E agradecer-lhes iludido
Ao vê-los construir pra nosso bem
As fantásticas miragens do Deserto...
E ao acordar, ver-se perdido,
No árido isolamento
Do intérmino areal...
A miragem desfeita como um fumo!...
E pra o regresso ao lar,
Um céu sem Sol nem Estrela Polar...
Uma bússola doida!...
E um chão de areia, sem rumo!...
E partir, e sofrer,
E ao cabo, enfim,
Chegar
Exausto, ao lar...
E não ver mais que os restos do festim...
O pão alvo, espezinhado...
A golpear-nos as mãos, taças partidas...
As bilhas entornadas no sobrado...
Cinzas no chão! Lume apagado...
As flores emurchecidas...
O doce leite derramado e agre...
E em vez de mel:
– Favos de cera e fel
E o vinho nos cristais trocado por vinagre!
E através das janelas e dos vidros partidos
Da nossa alma,
Sentir numa agonia,
A sacudir-nos, a risada dos fantasmas
Cruel e fria.
In “A Alma e o Deserto”
Portugália Editora
Américo Cortês Pinto
(1896-1979)
SE TUDO ACONTECER COMO PREVISTO
Se tudo acontecer como previsto,
o Senhor Gouveia acordará
um pouco antes do almoço, mesmo a tempo
de descer as escadas e esperar pelo carteiro.
Se acaso receber correspondência,
há-de tirar o chapéu a uma senhora.
Se não lhe chegar nenhuma carta,
fará exactamente a mesma coisa.
Na vida como na escrita, o Senhor Gouveia
utiliza sempre a mesma rima. Os seus gestos
são alexandrinos medidos ao milímetro,
coisas dificilmente publicáveis
já em meados da década de cinquenta,
quando pela primeira vez tirou o chapéu
a uma senhora
(e nunca mais lho devolveu).
In "Senhor Gouveia"
Averno - 2006
Vítor Nogueira
(N.1966)
ANIVERSÁRIO
Será comovedor os quatro anos
e a festa colorida
as velas mal sopradas entre um rissol
no chão e os parabéns:
quatro anos de vida.
Serão comovedores os sumos de
laranja concentrados (proporções
por defeito) e os gostos tão
diversos, o bolo de ananás,
os pés inchados.
Será soberbamente comovente
toda a gente cantando,
o mau comportamento dos adultos
conversas-gelatinas e os anos
só pretexto.
Mas eu gostei. E contra mim gostei
mesmo no resto:
este prazer pequeno do silêncio
um sapato apertando descalçado
guardanapo e rissol por arrumar
no chão e um copo
olhando o nada
em restos de champanhe
(Minha Senhora de Quê)
In “Inversos – Poesias 1990 – 2010”
Publicações Dom Quixote
Ana Luísa Amaral
(N. 1956)
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