Quinta-feira, 30 de Novembro de 2017

Recordando... Fernanda de Castro

NÃO FORA O MAR!

 

Não fora o mar,

e eu seria feliz na minha rua,

neste primeiro andar da minha casa

a ver, de dia, o sol, de noite a lua,

calada, quieta, sem um golpe de asa.

 

Não fora o mar,

e seriam contados os meus passos,

tantos para viver, para morrer,

tantos os movimentos dos meus braços,

pequena angústia, pequeno prazer.

 

Não fora o mar,

e os seus sonhos seriam sem violência

como irisadas bolas de sabão,

efémero cristal, branca aparência,

e o resto — pingos de água em minha mão.

 

Não fora o mar,

e este cruel desejo de aventura

seria vaga música ao sol pôr

nem sequer brasa viva, queimadura,

pouco mais que o perfume duma flor.

 

Não fora o mar

e o longo apelo, o canto da sereia,

apenas ilusão, miragem,

breve canção, passo breve na areia,

desejo balbuciante de viagem.

 

Não fora o mar

e, resignada, em vez de olhar os astros

tudo o que é alto, inacessível, fundo,

cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,

iria de olhos baixos pelo mundo.

 

Não fora o mar

e o meu canto seria flor e mel,

asa de borboleta, rouxinol,

e não rude halali, garra cruel,

Águia Real que desafia o sol.

 

Não fora o mar

e este potro selvagem, sem arção,

crinas ao vento, com arreio,

meu altivo, indomável coração,

 

Não fora o mar

e comeria à mão,

não fora o mar

e aceitaria o freio.

 

In "Trinta e Nove Poemas"

Edições Ocidente - Editorial Império

 

Fernanda de Castro

(1900-1994)

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Sábado, 25 de Novembro de 2017

Recordando... Glória de Sant'Anna

AFIRMAÇÃO

 

A essência das coisas é senti-las

tão densas e tão claras,

que não possam conter-se por completo

nas palavras.

 

A essência das coisas é nutri-las

tão de alegria e mágoa,

que o silêncio se ajuste à sua forma

sem mais nada.

 

In “Um Denso Azul Silêncio”

 

Glória de Sant'Anna  

(1925-2009)

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Domingo, 19 de Novembro de 2017

Recordando... Carlos de Oliveira

CARTA A ÂNGELA

 

Para ti, meu amor, é cada sonho

de todas as palavras que escrever,

cada imagem de luz e de futuro,

cada dia dos dias que viver.

 

Os abismos das coisas, quem os nega,

se em nós abertos inda em nós persistem?

Quantas vezes os versos que te dou

na água dos teus olhos é que existem!

 

Quantas vezes chorando te alcancei

e em lágrimas de sombra nos perdemos!

As mesmas que contigo regressei

ao ritmo da vida que escolhemos!

 

Mais humana da terra dos caminhos

e mais certa, dos erros cometidos,

foste de novo, e sempre, a mão da esperança

nos meus versos errantes e perdidos.

 

Transpondo os versos vieste à minha vida

e um rio abriu-se onde era areia e dor.

Porque chegaste à hora prometida

aqui te deixo tudo, meu amor!

 

In “Trabalho Poético”

Assírio & Alvim

 

Carlos de Oliveira

(1921-1981)

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Segunda-feira, 13 de Novembro de 2017

Recordando... Américo Cortês Pinto

O FESTIM

 

Uns atrás de outros, impertinentes,

(Que estranho mundo de fantasmas tão dif'rentes!)

Ei-los que surgem aos encontrões

No perturbado Mundo Interior...

Uns a puxar por mim aos repelões,

Outros suaves e alicientes

Com falsos gestos de amor...

 

Uns severos, irados,

Desvairados,

Outros grotescos, histriónicos...

E os mais trágicos de todos – quem diria! –

Os fantasmas irónicos

Da Alegria...

 

Insinuam-se gentis,

Com doces falas, música nos gestos,

Promessas de oiro, subtis,

E o riso

De quem traz dentro das mãos o Paraíso

E é só pedi-lo que é pra nós também...

 

Ah! Como são amigos! Quem não há-de

Abrir tranquilo a porta...

Sentá-los à sua mesa!

Beber o vinho ácido às canecas

E entorná-lo perfumado

Com manchas de rubim sobre as toalhas!...

E olhar as nódoas sobre o linho,

A sorrir,

Sem saber distinguir

Se é sangue ou vinho!

 

Quebrar as taças e julgar que o ruído

Das lágrimas cortantes das estilhas

São risos claros de cristal...

 

E coroar a fronte no banquete

Com as coroas de rosas que nos dão,

Sem perceber que as rosas caem, ficam espinhos...

E à saída

Acompanhá-los pelas ruas, a cantar,

E deixar-se arrastar

Indefeso e sozinho,

Como se fosse, ao cabo do caminho,

Ali mesmo o Céu aberto...

 

E agradecer-lhes iludido

Ao vê-los construir pra nosso bem

As fantásticas miragens do Deserto...

 

E ao acordar, ver-se perdido,

No árido isolamento

Do intérmino areal...

 

A miragem desfeita como um fumo!...

E pra o regresso ao lar,

Um céu sem Sol nem Estrela Polar...

 

Uma bússola doida!...

 

E um chão de areia, sem rumo!...

 

E partir, e sofrer,

E ao cabo, enfim,

Chegar

Exausto, ao lar...

E não ver mais que os restos do festim...

 

O pão alvo, espezinhado...

A golpear-nos as mãos, taças partidas...

As bilhas entornadas no sobrado...

Cinzas no chão! Lume apagado...

As flores emurchecidas...

 

O doce leite derramado e agre...

E em vez de mel:

– Favos de cera e fel

E o vinho nos cristais trocado por vinagre!

 

E através das janelas e dos vidros partidos

Da nossa alma,

Sentir numa agonia,

A sacudir-nos, a risada dos fantasmas

Cruel e fria.

 

In “A Alma e o Deserto”

Portugália Editora

 

Américo Cortês Pinto

(1896-1979)

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Terça-feira, 7 de Novembro de 2017

Recordando... Vítor Nogueira

SE TUDO ACONTECER COMO PREVISTO

 

Se tudo acontecer como previsto,

o Senhor Gouveia acordará

um pouco antes do almoço, mesmo a tempo

de descer as escadas e esperar pelo carteiro.

Se acaso receber correspondência,

há-de tirar o chapéu a uma senhora.

Se não lhe chegar nenhuma carta,

fará exactamente a mesma coisa.

Na vida como na escrita, o Senhor Gouveia

utiliza sempre a mesma rima. Os seus gestos

são alexandrinos medidos ao milímetro,

coisas dificilmente publicáveis

já em meados da década de cinquenta,

quando pela primeira vez tirou o chapéu

a uma senhora

 

(e nunca mais lho devolveu).

 

In "Senhor Gouveia"

Averno - 2006

 

Vítor Nogueira

(N.1966)

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Quarta-feira, 1 de Novembro de 2017

Recordando... Ana Luísa Amaral

ANIVERSÁRIO

 

Será comovedor os quatro anos

e a festa colorida

as velas mal sopradas entre um rissol

no chão e os parabéns:

quatro anos de vida.

Serão comovedores os sumos de

laranja concentrados (proporções

por defeito) e os gostos tão

diversos, o bolo de ananás,

os pés inchados.

Será soberbamente comovente

toda a gente cantando,

o mau comportamento dos adultos

conversas-gelatinas e os anos

só pretexto.

Mas eu gostei. E contra mim gostei

mesmo no resto:

este prazer pequeno do silêncio

um sapato apertando descalçado

guardanapo e rissol por arrumar

no chão e um copo

olhando o nada

em restos de champanhe

 

(Minha Senhora de Quê)

 

In “Inversos – Poesias 1990 – 2010”

Publicações Dom Quixote

 

Ana Luísa Amaral

(N. 1956)

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