A LÁGRIMA
Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,
Seca, deserta e nua, à beira duma estrada.
Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.
Sobre uma folha hostil duma figueira brava,
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,
A aurora desprendeu, compassiva e divina,
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.
Lágrima tão ideal, tão límpida que, ao vê-la,
De perto era um diamante e de longe uma estrela.
Passa um rei com o seu cortejo de espavento,
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.
- «No seu diadema, disse o rei, quedando a olhar,
Há safiras sem conta e brilhantes sem par.
«Há rubis orientais, sangrentos e doirados,
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.
«Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.
«Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir
«Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,
Vendo o Globo a meus pés do alto do teu diadema!»
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.
E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
«Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!
«Far-te-ei relampejar, de vitória em vitória,
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!
«E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.
«E assim alumiarás com teu vivo esplendor
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!»
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.
Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.
Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d’oiro.
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,
Vendo a estrela, exclamou: «Oh Deus, que maravilha!
Como ela resplandece e tremeluz e brilha!
«Com meu oiro em montão podiam-se comprar
Os impérios dos reis e os navios do mar.
E por esse diamante esplêndido trocara
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!»
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Debaixo da figueira então um cardo agreste,
Já ressequido, disse à lágrima celeste:
«A terra onde o lilás e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.
«Se, a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.
«Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,
Ouvi trinar, gorjear a música dos ninhos.
«Nunca junto de mim ranchos de namoradas
Debandaram, cantando, em noites estreladas...
«Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai, nunca dei sombra e nunca tive flor!...
Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d’água,
Cai na desolação desta infinita mágoa!»
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,
Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu silenciosa!...
E algum tempo depois o triste cardo exangue,
Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue,
Dum roxo macerado e dorido e desfeito,
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...
E ao cálix virginal da pobre flor vermelha
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...
[25 de Março de 1888]
In "Poesias Dispersas"
Edições Vercial (2013)
Guerra Junqueiro
(1850-1923)
VÉNUS
Sublevava-se no verbo uma brancura
onde sucumbem subtis
trampolins de alvaiade com que a espuma
se exalta na penumbra e nos quadris.
E impugna o púbis. O assusta quase
no aperto da sua timidez
batida pelo mar feliz da frase
que se ergue do triunfo do que fez
com Vénus firme a resistir ao meio
da onda aonde se debate a trança.
E onde o desafio do seu seio
emerge, enquanto o justo ritmo avança
na só brancura duma espuma escrita
que ambas instrui e que uma só visita.
In "Uso da Penumbra"
Fernando Echavarria
(1929-2015)
FADO DO NAVEGANTE
Meu lugre "Vento de Maio",
todo pintado de azul,
comprei-o nos mares do Sul
a um pirata malaio.
Lá onde o céu é maior
trafiquei pérola e copra;
a todo o vento que sopra
soube o caminho de cor.
Um dia, não sei porquê,
(frágeis que são as memórias...)
fiz-me a águas hiperbóreas
a vr o que lá se vê.
No meu regresso do Polo
trouxe uns sorrisos de gelo,
esta neve no cabelo
e duas focas ao colo...
Cheguei inteiro a Lisboa,
mas ninguém me conheceu!
Por isso pintei de breu
a minha vela de proa.
Triste, vendi o navio;
só uma corda guardei.
Os nós que dei e desdei
até que ficou no fio!
o saber verdadeiro
e o gosto do mar amigo
vão para a morte comigo
no meu secreto roteiro.
In “Sete Luas”
Edição de 200 exemplares
da Tipografia da Atlântida, 1943
António de Sousa
(1898-1981)
QUERIA QUE OS PORTUGUESES
Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor
sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal
todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler
teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura
e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale
até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião
que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira
alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto
se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia
deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.
In “Poemas”
Agostinho da Silva
(1906-1994)
FUI HOJE À CAIXA, MARGA
Fui hoje à Caixa, Marga, receber
A pensão de reforma.
Coxo e doido, Marga. Muito!
Duro é ser velho, e, então, de ossos a arder?
A minha tíbia engole facas.
Fui hoje à Caixa receber
O troco das pernas fracas.
E lembrei-me de ti, que eras habituée
Lá pela ordem dos trinta, dos cinquenta milhões.
Da formiga à cigarra:
(Iguais ocasiões)
- Que faisiez vous aux temps chaux,
Dit-elle à cette emprunteuse.
Lembrei-me de ti com La Fontaine,
Cigarra, claro, chanteuse.
Formiga fora uma aubaine.
Marga, é tão triste o dinheiro!
Até já o ganhas, como eu,
E andaste coxa, cheia de dores
Tu que o atiravas aos punhados
Como em batalha de flores
Estás como os reformados
À espera dos directores
Mas como ainda és bonita
E há sempre um, pronto aos favores,
Vê bem o que ele te debita
Que descontos te faz
Ê provável que insista
Sabendo-te "petite amie" de um pobre pensionista
A menina bem sabe que há certas coisas que nem mesmo um aperto
(Ai, a minha peminha!)
Comucópia - corno coxo.
In "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"
IN-CM - Imprensa Nacional-Casa da Moeda
Vitorino Nemésio
(1901-1978)
NÃO QUERO QUE ME FALTES
Não quero que me faltes
na penumbra, não quero
que ao ardor se junte
qualquer senão
deito ao desvario,
cinzas, enredos,
paixões,
a solidão,
e nem creio entender
a vida
rectilínea. Só em solavancos,
entre o inverno, o outono,
e o verão.
In "Desrazões"
Quasi Edições - 2002
Helga Moreira
(N. 1950)
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