Terça-feira, 31 de Outubro de 2017

Recordando... Guerra Junqueiro

A LÁGRIMA

 

Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,  
Seca, deserta e nua, à beira duma estrada.  

 

Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,  
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.  

 

Sobre uma folha hostil duma figueira brava,  
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava, 

 

A aurora desprendeu, compassiva e divina, 
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina. 

 

Lágrima tão ideal, tão límpida que, ao vê-la,  
De perto era um diamante e de longe uma estrela.  

 

Passa um rei com o seu cortejo de espavento,  
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.  

 

- «No seu diadema, disse o rei, quedando a olhar, 
Há safiras sem conta e brilhantes sem par. 

 

«Há rubis orientais, sangrentos e doirados,  
Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.  

 

«Há pérolas que são gotas de mágoa imensa,  
Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.  

 

«Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir 
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir 

 

«Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,  
Vendo o Globo a meus pés do alto do teu diadema!» 

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa. 

 

Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,  
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.  

 

E o cavaleiro diz à lágrima irisada:  
«Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!  

 

«Far-te-ei relampejar, de vitória em vitória,  
Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!  

 

«E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,  
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.  

 

«E assim alumiarás com teu vivo esplendor 
Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!» 

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,   
Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.  

 

Montado numa mula escura, de caminho,  
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.  

 

Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:  
Grandes arcas de cedro, abarrotadas d’oiro.  

 

E o velhinho andrajoso e magro como um junco,  
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,  

 

Vendo a estrela, exclamou: «Oh Deus, que maravilha!  
Como ela resplandece e tremeluz e brilha!  

 

«Com meu oiro em montão podiam-se comprar 
Os impérios dos reis e os navios do mar.  

 

E por esse diamante esplêndido trocara 
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!»  

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.  

 

Debaixo da figueira então um cardo agreste, 
Já ressequido, disse à lágrima celeste: 

 

«A terra onde o lilás e a balsamina medra 
Para mim teve sempre um coração de pedra.  

 

«Se, a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,  
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.  

 

«Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,  
Ouvi trinar, gorjear a música dos ninhos.  

 

«Nunca junto de mim ranchos de namoradas 
Debandaram, cantando, em noites estreladas... 

 

«Voa a ave no azul e passa longe o amor,  
Porque ai, nunca dei sombra e nunca tive flor!... 

 

Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d’água,  
Cai na desolação desta infinita mágoa!»  

 

E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,  
Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu silenciosa!... 

 

E algum tempo depois o triste cardo exangue,  
Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue, 

 

Dum roxo macerado e dorido e desfeito, 
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito... 

 

E ao cálix virginal da pobre flor vermelha 
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

           

[25 de Março de 1888]  

                                                                                       

In "Poesias Dispersas"

Edições Vercial (2013)

 

Guerra Junqueiro

(1850-1923)

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Quarta-feira, 25 de Outubro de 2017

Recordando... Fernando Echavarria

VÉNUS

 

Sublevava-se no verbo uma brancura

onde sucumbem subtis

trampolins de alvaiade com que a espuma

se exalta na penumbra e nos quadris.

 

E impugna o púbis. O assusta quase

no aperto da sua timidez

batida pelo mar feliz da frase

que se ergue do triunfo do que fez

 

com Vénus firme a resistir ao meio

da onda aonde se debate a trança.

E onde o desafio do seu seio

 

emerge, enquanto o justo ritmo avança

na só brancura duma espuma escrita

que ambas instrui e que uma só visita.

 

In "Uso da Penumbra"

 

Fernando Echavarria

(1929-2015)

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Quinta-feira, 19 de Outubro de 2017

Recordando... António de Sousa

FADO DO NAVEGANTE

 

Meu lugre "Vento de Maio",

todo pintado de azul,

comprei-o nos mares do Sul

a um pirata malaio.

 

Lá onde o céu é maior

trafiquei pérola e copra;

a todo o vento que sopra

soube o caminho de cor.

 

Um dia, não sei porquê,

(frágeis que são as memórias...)

fiz-me a águas hiperbóreas

a vr o que lá se vê.

 

No meu regresso do Polo

trouxe uns sorrisos de gelo,

esta neve no cabelo

e duas focas ao colo...

 

Cheguei inteiro a Lisboa,

mas ninguém me conheceu!

Por isso pintei de breu

a minha vela de proa.

 

Triste, vendi o navio;

só uma corda guardei.

Os nós que dei e desdei

até que ficou no fio!

 

o saber verdadeiro

e o gosto do mar amigo

vão para a morte comigo

no meu secreto roteiro.

 

In “Sete Luas”

Edição de 200 exemplares

da Tipografia da Atlântida, 1943

 

António de Sousa

(1898-1981)

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Sexta-feira, 13 de Outubro de 2017

Recordando... Agostinho da Silva

QUERIA QUE OS PORTUGUESES

 

Queria que os portugueses

tivessem senso de humor

e não vissem como génio

todo aquele que é doutor

 

sobretudo se é o próprio

que se afirma como tal

só porque sabendo ler

o que lê entende mal

 

todos os que são formados

deviam ter que fazer

exame de analfabeto

para provar que sem ler

 

teriam sido capazes

de constituir cultura

por tudo que a vida ensina

e mais do que livro dura

 

e tem certeza de sol

mesmo que a noite se instale

visto que ser-se o que se é

muito mais que saber vale

 

até para aproveitar-se

das dúvidas da razão

que a si própria se devia

olhar pura opinião

 

que hoje é uma manhã outra

e talvez depois terceira

sendo que o mundo sucede

sempre de nova maneira

 

alfabetizar cuidado

não me ponham tudo em culto

dos que não citar francês

consideram puro insulto

 

se a nação analfabeta

derrubou filosofia

e no jeito aristotélico

o que certo parecia

 

deixem-na ser o que seja

em todo o tempo futuro

talvez encontre sozinha

o mais além que procuro.

 

In “Poemas”

 

Agostinho da Silva

(1906-1994)

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Sábado, 7 de Outubro de 2017

Recordando... Vitorino Nemésio

FUI HOJE À CAIXA, MARGA

 

Fui hoje à Caixa, Marga, receber

A pensão de reforma.

Coxo e doido, Marga. Muito!

Duro é ser velho, e, então, de ossos a arder?

A minha tíbia engole facas.

Fui hoje à Caixa receber

O troco das pernas fracas.

E lembrei-me de ti, que eras habituée

Lá pela ordem dos trinta, dos cinquenta milhões.

Da formiga à cigarra:

(Iguais ocasiões)

- Que faisiez vous aux temps chaux,

Dit-elle à cette emprunteuse.

Lembrei-me de ti com La Fontaine,

Cigarra, claro, chanteuse.

Formiga fora uma aubaine.

Marga, é tão triste o dinheiro!

Até já o ganhas, como eu,

E andaste coxa, cheia de dores

Tu que o atiravas aos punhados

Como em batalha de flores

Estás como os reformados

À espera dos directores

Mas como ainda és bonita

E há sempre um, pronto aos favores,

Vê bem o que ele te debita

Que descontos te faz

Ê provável que insista

Sabendo-te "petite amie" de um pobre pensionista

A menina bem sabe que há certas coisas que nem mesmo um aperto

(Ai, a minha peminha!)

Comucópia - corno coxo.

 

In "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"

IN-CM - Imprensa Nacional-Casa da Moeda

 

Vitorino Nemésio

(1901-1978)

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Domingo, 1 de Outubro de 2017

Recordando... Helga Moreira

NÃO QUERO QUE ME FALTES

 

Não quero que me faltes

na penumbra, não quero

que ao ardor se junte

qualquer senão

 

deito ao desvario,

cinzas, enredos,

paixões,

a solidão,

 

e nem creio entender

a vida

rectilínea. Só em solavancos,

entre o inverno, o outono,

e o verão.

 

In "Desrazões"

Quasi Edições - 2002

 

Helga Moreira

(N. 1950)

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