Quinta-feira, 31 de Agosto de 2017

Recordando... Luís Filipe Castro Mendes

MÚSICA CALADA

 

Dizias que nos sobram as palavras:

e era o lugar perfeito para as coisas

esse escuro vazio no teu olhar.

 

E demorava a dura paciência,

fruto do frio nas nossas mãos vazias

que mais coisas não tinham para dar.

 

Dizia então a dor o nosso gesto

e durava nas coisas mais antigas

a solidão sem rasto que há no mar.

 

In “Poesia Reunida (1985-1999)”

Quetzal, 1999

 

Luís Filipe Castro Mendes

(N. 1950)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sexta-feira, 25 de Agosto de 2017

Recordando... Políbio Gomes dos Santos

GÉNESIS

 

O mundo existe desde que eu fui nado.

Tudo o mais é um… era uma vez

- A história que se contou.

 

No princípio criou-se o leite que mamei

E eu vi que era bom e chorei

Quando a fonte materna secou.

 

A terra era sem forma

E vazia;

Havia trevas no abismo.

 

E formou-se o chão

E amassou-se o pão

Que eu comi.

(Era este aquela esponja que eu mordia,

Que eu babava,

Que eu sujava,

Que uma gente andrajosa pedia).

 

E então se fez

A geração remota dos papões:

Nascera a esmola, o medo, a prece

E o rosto que empalidece…

E a rosa criou-se,

Desejada,

E logo o espinho,

A lágrima,

O sangue.

Este era vermelho e doce,

A lágrima doce, brilhante, salgada;

No espinho havia o gosto

Da vingança perfumada.

 

E eu vi que tudo era bom.

E fizeram-se os luminares,

Porque eu tinha olhos,

E o som fez-se de cantares

E de gemidos,

Porque eu tinha ouvidos.

Nasceram as águas

E os peixes das águas

E alguns seres viventes da terra

E as aves dos céus.

O homem que então era vagamente feito,

Dominou o homem, comprimiu-lhe o peito,

E fizeram-se as mágoas

E o adeus,

 

E eu vi que tudo era bom.

 

A mulher só mais tarde se fez:

Foi duma vez

Em que eu e ela nos somámos

E ficamos três.

 

Nisto e no mais se gastaram

Sete longuíssimos dias,

O mundo era feito

E embora por tudo e nada imperfeito,

Eu vi que era bom.

 

Acaba o mundo

Quando eu morrer.

Sim… será o fim!

Também tu deixas de existir,

No mesmo dia.

 

E o resto que seguir

É profecia.

 

In “As Três Pessoas”

Portugália Editora

 

Políbio Gomes dos Santos

(1911-1939)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Sábado, 19 de Agosto de 2017

Recordando... Gastão Cruz

ODE SONETO À CORAGEM

 

O silêncio coragem não consente

o amor da linguagem o silêncio

é um incêndio grande e a nossa fala

estremece de palavras abraçadas

 

Há um amor do que se diz do fogo

onde sempre se esgota a nossa voz

dizer palavras é lutar se a luta

reconhece as palavras que produz

 

se as acende nas ruas

do sentido que o coração dos homens conseguiu

impor-lhes em silêncio incêndio grande

 

é a língua maior incêndio os homens

sobre a fala esgotada coragem sobre

o fogo maior incêndio o amor

 

In “A doença”

Editora Portugália

 

Gastão Cruz

(N. 1941)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Domingo, 13 de Agosto de 2017

Recordando... António Ladeira

OS AMIGOS

 

Quando se abrem os portões das grandes casas

e os amigos se entreolham antes de recolherem

aos respectivos túmulos

todos tão estranhamente corteses e finais

tão esquecidos de tudo o que um dia prometeram

tão emudecidos e gratos

tão suspensos de uma sede que os tornou irredutíveis

com os seus cabelos verdes e revoltos

a roupa que o corpo ainda segrega

por ter frio

por ser sempre de noite.

 

Amigos tímidos como certos dias de chuva

com os seus passos de borracha

os seus velhos sobretudos

as suas vozes em coro.

 

Os rostos inclinados sobre a cidade limpa

onde os vejo escrever, aplicadamente,

sobre o tampo metálico de uma mesa de café

a uma janela que dá sobre o Tejo

a ver passar o mundo.

 

Amigos pensativos como nuvens baixas,

como janelas abertas sobre praias escuras,

heras, campos de heras,

campos de ossos.

 

In “Eu vi jardins no inferno”

Palimpsesto Editora - 2010

 

António Ladeira

(N. 1966)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Segunda-feira, 7 de Agosto de 2017

Recordando... Eugénio de Andrade

SERÃO PALAVRAS

 

Diremos prado bosque

primavera,

e tudo o que dissermos

é só para dizermos

que fomos jovens

 

Diremos mãe amor

um barco,

e só diremos

que nada há

para levar ao coração

 

Diremos terra mar

ou madressilva,

mas sem música no sangue

serão palavras só,

e só palavras, o que diremos.

 

In “Mar de Setembro” (1961)

 

Eugénio de Andrade **

(1923-2005)

 

** Pseudónimo de José Fontinhas

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Terça-feira, 1 de Agosto de 2017

Recordando... Cesário Verde

DESASTRE 

 

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,

Soltando fundos ais e trémulos queixumes;

Caíra d’andaime e dera com o peito,

Pesada e secamente, em cima d’uns tapumes.

 

A brisa que balouça as árvores das praças,

Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,

E dentro eu divisei o ungido das desgraças,

Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

 

Um preto, que sustinha o peso d’um varal,

Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»

E um lenço esfarrapado em volta da cabeça

Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

 

Flanavam pelo Aterro os dândys e as cocottes,

Corriam char-à-bancs cheios de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

 

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,

A rir e a conversar numa cervejaria,

Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!

Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.

 

Findara honradamente. As lutas, afinal,

Deixavam repousar essa criança escrava,

E a gente da província, atónita, exclamava:

«Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!»

 

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;

Mornas essências vêm d’uma perfumaria,

E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,

Numa travessa escura em que não entra o dia!

 

Um fidalgote brada a duas prostitutas:

«Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!»

Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas

E conta-se o que foi na loja d’um barbeiro.

 

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,

De bagas de suor tinha uma vida cheia;

Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,

Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

 

Depois da sesta, um pouco estontecido e fraco,

Sentira a exalação da tarde abafadiça;

Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco

E o fato remendado e sujo da caliça.

 

Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos –,

Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!

«Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!»

E estremeceu, rolou nas atracções da queda.

 

O mísero a doença, as privações cruéis

Soubera repelir – ataques desumanos!

Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos

Andara a apregoar diários de dez réis.

 

Anoitecia então. O féretro sinistro

Cruzou com um coupé seguido dum correio,

E um democrata disse: «Aonde irás, ministro!

Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»

 

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,

– Conservador, que esmaga o povo com impostos –,

Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –

Os filhos naturais à roda dos expostos...

 

Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...

De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!

Todos os figurões cortejam-no risonhos

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

 

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,

O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.

 

E antes, ao soletrar a narração do facto,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:

«Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

 

Lisboa

 

In “Cânticos do Realismos e Outros Poemas - 32 Cartas”

Edição Teresa Sobral Cunha

Relógio de Água Editores

 

Cesário Verde

(1855-1886)

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... Ricardo Gil...

. Recordando... Saúl Dias *...

. Recordando... Ruy Belo

. Recordando... Rui Miguel ...

. Recordando... Rui Pires C...

. Recordando... Sebastião d...

. Recordando... Augusto Mol...

. Recordando... Egito Gonça...

. Recordando... António Ram...

. Recordando... Maria Auror...

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds