Sábado, 31 de Dezembro de 2016

Recordando... Natália Correia

ODE À PAZ

 

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,

Pelas aves que voam no olhar de uma criança,

Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

Pela branda melodia do rumor dos regatos,

 

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,

Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,

Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

Pelos aromas maduros de suaves outonos,

Pela futura manhã dos grandes transparentes,

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

 

[Inéditos - (1985/1990)]

 

In “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”

Poesia Completa

Publicações Dom Quixote

 

Natália Correia

(1923-1993)

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Domingo, 25 de Dezembro de 2016

Recordando... Miguel Torga **

ÚLTIMO NATAL

 

Menino Jesus, que nasces

Quando eu morro,

E trazes a paz

Que não levo,

O poema que te devo

Desde que te aninhei

No entendimento,

E nunca te paguei

A contento

Da devoção,

Mal entoado,

 

Aqui te fica mais uma vez

Aos pés,

Como um tição

Apagado,

Sem calor que os aqueça.

Com ele me desobrigo e desengano:

És divino, e eu sou humano,

Não há poesia em mim que te mereça.

 

In “Antologia Poética”

Edição do Autor - 1981

 

Miguel Torga **

(1907-1995)

 

** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha

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Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2016

Recodando... Edgardo Xavier

UM DIA

 

Um dia, serei folha ao vento

tapete dos teus passos

saudade ocre da luz.

 

Um dia, serei pássaro

e nas alturas

chegarei ao azul onde

silenciosos

dormem os teus sonhos.

 

Um dia, serei barco no teu enredo

e tumulto do teu sangue.

 

Um dia, navegarei a teu lado

até ao fim do amor.

 

In “Escrita Rouca”

Editora Insubmisso Rumor

 

Edgardo Xavier

(N. 1946)

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Terça-feira, 13 de Dezembro de 2016

Recordando... Manuel António Pina

JUNTO À ÁGUA

 

Os homens temem as longas viagens

os ladrões da estrada, as hospedarias,

e temem morrer em frios leitos

e ter sepultura em terra estranha.

 

Por isso os seus passos os levam

de regresso a casa, às vontades da infância,

ao velho portão em ruínas, à poeira

das primeiras, das únicas lágrimas.

 

Quantas vezes em

desolados quartos de hotel

esperei em vão que me batesses à porta,

voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

 

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,

sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,

e no meio das multidões dos aeroportos.

Agora só quero dormir um sono sem olhos

 

e sem escuridão, sob um telhado por fim.

À minha volta estilhaça-se

o meu rosto em infinitos espelhos

e desmoronam-se os meus retratos na moldura.

 

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Anoitece em todas as cidades do mundo,

acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos

onde o meu coração, falando, vagueia.

 

(Um Sítio Onde Pousar a Cabeça)

 

In “Todas as palavras”

Poesia reunida

Assírio & Alvim

 

Manuel António Pina

(1943-2012)

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Quarta-feira, 7 de Dezembro de 2016

Recordando... Camilo Castelo Branco

POEMA DEDICADO A ANA PLÁCIDO - 1857

 

Querida, o teu viver era um letargo,

Nenhuma aspiração te atormentava;

Afeita já do jugo ao duro cargo,

Teu peito nem sequer desafogava.

Fui eu que te apontei um mundo largo

De novas sensações; teu peito ansiava

Ouvindo-me contar entre caricias,

Do livre e ardente amor tantas delícias!

 

Não te mentia, não. Sentiste-o, filha,

Esse amor infinito e imaculado,

Estrela maga que incessante brilha

Da alma pura ao casto amor sagrado;

Afecto nobre que jamais partilha

O coração de vícios ulcerado.

Não sentes, nem recordas, já sequer?

Quem deste amor te despenhou, mulher ?

 

Eu não! Se muitos crimes me desluzem,

Se pôde transviar-me o seu encanto,

Ao menos uma só não me recusem,

Uma virtude só: amar-te tanto!

Embora injúrias contra mim se cruzem,

Cuspindo insultos neste amor tão santo,

Diz tu quem fui, quem sou, e se é verdade

O opróbrio aviltador da sociedade.

 

In “Citações e Pensamentos de Camilo Castelo Branco”

Org. de Paulo Neves Silva

Casa das Letras

 

Camilo Castelo Branco

(1825-1890)

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Quinta-feira, 1 de Dezembro de 2016

Recordando... António Feijó

PRINCESA ENCANTADA

 

Formosa Princesa dormia ha cem annos;

Dormia ou sonhava... Ninguem o sabia.

Passavam-se os dias, passavam-se os annos,

E a linda Princesa dormia, dormia,

Dormia ha cem annos!

 

Em torno, sentadas, dormiam as Damas,

Cobertas de joias, cobertas de lhamas;

 

Com formas e aspectos de finas imagens,

Esbeltos e loiros, dormiam os pagens.

 

E ás portas de bronze, por terra halabardas,

Num somno profundo dormiam os guardas.

 

Lá fóra, na sombra dos parques discretos,

Nem aves gorgeiam, nem zumbem insectos.

 

As arvores sonham, na sombra dos poentes,

Immoveis, á beira dos lagos dormentes.

 

E as fontes que d'antes sonoras gemiam,

Somnambulas mudas, apenas corriam...

 

Um dia, de longe, de terras distantes,

Com pagens, arautos, donzeis, passavantes,

 

Bandeiras ao vento, clarins, atabales,

Echoando a distancia por montes e valles,

 

– Um principe, herdeiro d'um throno potente,

Com olhos suaves d'aurora nascente,

 

Excelso e formoso, magnanimo e moço,

– Correndo aventuras, num grande alvoroço,

 

Chegou ao Castello, que ha tanto dormia,

Como uma alvorada, prenuncia do dia...

 

E ao ver a princesa, sentada em seu throno,

N'aquelle profundo, extactico somno,

 

Tomado d'estranha, indizivel surpresa,

Na boca entreaberta da linda Princesa,

 

Tremendo e sorrindo, seu labio collou-se

N'um beijo, que ao labio a alma lhe trouxe.

 

Accorda a Princesa; despertam as Damas,

As faces ardentes, os olhos em chamas.

 

Despertam os Pagens, nos seus escabellos,

Com halos de fogo nos loiros cabellos.

 

Accordam os guardas; e, tudo desperto,

A vida renasce no parque deserto.

 

Suspiram as fontes; gorgeiam as aves,

Das áleas profundas nas sombras suaves.

 

As arvores tremem, no ar transparente,

Á brisa que sopra, como halito ardente.

 

Nas torres, os sinos repicam de festa;

O povo em choreias enchia a floresta...

 

E a linda Princesa, seus olhos fitando

No Principe excelso, sorrindo e còrando,

 

– «Sonhava comtigo...» Porque é que tardaste?

Mas já nesse instante, formando contraste,

 

Quando isto dizia, erguendo-se a medo,

A voz parecia trahir o segredo

 

De quem, num relance, talvez lamentasse

Que sonho tão lindo tão cedo acabasse!...

 

A linda Princesa sonhava ha cem annos,

E fóra do Sonho só há desenganos...

 

[mantém a grafia original]

 

In “Sol de Inverno”

Livrarias Aillaud e Bertrand - 1922

 

António Feijó

(1859-1917)

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