NA HORA DE PÔR A MESA, ÉRAMOS CINCO
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
In “A Criança em Ruínas”
Quetzal Editores
José Luís Peixoto
(N. 1974)
NINGUÉM MEU AMOR
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.
In “Uma Pedra ao Lado da Evidência”
Assírio & Alvim
Sebastião Alba **
(1940-2000)
** Pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves
SE A NOSSA VOZ CRESCESSE...
Se a nossa voz crescesse, onde era a árvore?
Em que pontas, a corola do silêncio?
Coração já cansado, és a raiz:
Uma ave te passe a outro país.
Coisas de terra são palavra:
Semeia o que calou.
Não faz sentido quem lavra
Se o não colhe do que amou.
Assim, sílaba e folha, porque não
Num só ramo levá-las
Com a graça e o redondo de uma mão?
(Tu não te calas? Tu não te calas?!)
5-8-1962
In "Canto de Véspera"
Guimarães Editores
Vitorino Nemésio
(1901-1978)
AS CRIANÇAS
Então as crianças falaram da Morte.
Sentadas nos degraus de pedra,
Pousadas na manhã cinzenta,
Disseram: – Levava um vestido branco,
As mãos roxas e uma flor cansada.
No largo as mulheres cantavam.
Pensavam nos companheiros
E nas noites de amor.
As crianças permaneciam invioladas,
Possuídas de secretas imagens
E de tudo quanto foi antes do próprio nascimento.
Sentadas nos degraus de pedra,
As crianças desdobravam-se sucessivamente.
Unidades, dezenas, centenas, milhares, milhões, biliões.
O seu estandarte chama-se nevoeiro.
Mas os olhos repercutiam dobres de sinos
E uma enigmática energia solar.
Todavia, as noites das crianças eram templos de solidão
E nos leitos soluçavam o temor dos intrusos.
De manhã, invadiram todos os espaços e luzes.
E os adultos, ignorantes e cegos, sorriam.
– São as crianças!, diziam.
E seguiam a ruminar os seus sonhos,
Como se tivessem roçado a paz.
Mas as crianças germinavam, mudas e sábias,
As ordens recebidas num sol antigo.
Armavam-se de reservas e paixões,
Faziam planos que os adultos não deixariam depois cumprir.
(Depois, quando as crianças fossem adultos.)
Elas sabem que existe o Paraíso
Mas a distância de cada dia, entre os homens,
Escurece-lhes a memória finita.
Abrigam-se então na memória infinita
Que as liberta e possui
E nos leitos soluçam o temor dos intrusos.
In “Colóquio/Letras”
N.º 1 – Março.1971
Fundação Calouste Gulbenkian
Pág. 70/71
Natércia Freire
(1919-2004)
PODE-SE ESCREVER
Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar numa caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada
Pode-se não escrever
In "Actuação Escrita"
Editora & etc (1980)
Pedro Oom
(1926-1974)
SOFRO
Sofro
de não te ver,
de perder
os teus gestos
leves, lestos,
a tua fala
que o sorriso embala,
a tua alma
límpida, tão calma...
Sofro
de te perder.
durante dias que parecem meses,
durante meses que parecem anos...
Quem vem regar o meu jardim de enganos,
tratar das árvores de tenrinhos ramos?
In “Tarde Azul”
Editora Bonecos Rebeldes - 2008
Saúl Dias **
(1902-1983)
** Pseudónimo de Júlio Maria dos Reis Pereira
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