HÁ DIAS ASSIM
Há dias assim
cinzentos de sol
a amarelecerem as folhas da melancolia
Há dias assim
com sorrisos imóveis
quando tombam os ramos da noite
Há dias assim
onde o instante quebra
a aliança entre o homem e as coisas
E nesta sucessão dos dias
deslizo como uma gota sem contactos
que abro entre formas cegas que me ignoram
In “Momentos e Fragmentos”
Universitária Editora
António Sem **
(N. 1945)
** Pseudónimo de António Manuel Gonçalves Filipe
MALDITO SEJA EU
Hoje acordei dividido
na impossibilidade
de me transformar numa metáfora
Assim preso
a um muro de vídeo
cheio de imagens
feridas pelo impessoal
Restos de mim
espalhados pelo chão
de uma época
que não consigo destruir
In “Revista A Mar Arte”
Nº 5 - Outono de 1996
Pág. 32
A. Dasilva O. **
(N. 1958)
** Pseudónimo de António S. Oliveira
CORREDOR
Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.
Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.
E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.
E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha dos railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes no cais.
E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.
In “Surrealismo Abjeccionismo”
Antologia organizada por Mário Cesariny
Edições Salamandra
Luís Veiga Leitão **
(1912-1987)
** Pseudónimo de Luís Maria Leitão
TENTAS, DE LONGE...
Tentas, de longe, dizer que estás aqui.
Com peso triste caminha na rua o Outono.
O meu coração debruça-se à janela
a ver pessoas e carros, e as folhas caíndo.
Mastigo esta solidão
como quando era pequeno e jantava
diante dos pais zangados:
devagar, ausente.
In "A musa irregular"
Ed. Asa - 1997
Fernando Assis Pacheco
(1937-1995)
DOENTE
Que negro mal o meu! estou cada vez mais rouco!
Fogem de mim com asco as virgens d'olhar cálido...
E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido,
Comentam entre si: - coitado, está por pouco!...
Por isso tenho ódio a quem tiver saúde,
Por isso tenho raiva a quem viver ditoso,
E, odiando toda a gente, eu amo o tuberculoso.
E só estou contente ouvindo um alaúde.
Cada vez que me estudo encontro-me diferente,
Quando olham para mim é certo que estremeço;
E vai, pensando bem, sou, como toda a gente,
O contrário talvez daquilo que pareço...
Espírito irrequieto, fantasia ardente,
Adoro como Poe as doidas criações,
E se não bebo absinto é porque estou doente,
Que eu tenho como ele horror às multidões.
E amando doudamente as formas incompletas
Que às vezes não consigo, enfim, realizar,
Eu sinto-me banal ao pé dos mais poetas,
E, achando-me incapaz, deixo de trabalhar...
São filhos do meu tédio e duma dor qualquer
Meus sonhos de neurose horrivelmente histéricos
Como as larvas ruins dos corpos cadavéricos,
Ou como a aspiração de Charles Baudelaire.
Apraz-me o simbolismo ingénito das coisas...
E aos lábios da Mulher, a desfazer-se em beijos,
Prefiro os lábios maus das negregadas loisas,
Abrindo num ancelar de mórbidos desejos.
E é vão que medito e é em vão que sonho:
Meu coração morreu, minha alma é quase morta...
Já sinto emurchecer no crânio a flor do Sonho,
E oiço a Morte bater, sinistra, à minha porta...
Estou farto de sofrer, o sofrimento cansa,
E, por maior desgraça e por maior tormento,
Chego a julgar que tenho - estúpida lembrança -
Uma alma de poeta e um pouco de talento!
A doença que me mata é moral e física!
De que me serve a mim agora ter esperanças,
Se eu não posso beijar as trémulas crianças,
Porque ao meu lábio aflui o tóxico da tísica?
E morro assim tão novo! Ainda não há um mês,
Perguntei ao Doutor: - Então?...- Hei-de curá-lo...
Porém já não me importo, é bom morrer, deixá-lo!
Que morrer - é dormir... dormir... sonhar talvez...
Por isso irei sonhar debaixo dum cipreste
Alheio à sedução dos ideais perversos...
O poeta nunca morre embora seja agreste
A sua aspiração e tristes os seus versos!
In “Fel”
Libânio & Cunha Editores - 1898
José Duro
(1875-1899)
PALETA
Tens uma paleta
a que faltam
algumas cores. Talvez
porque há substâncias
a que não soubeste
dar expressão. Ou porque elas
são incolores. Ou porque
em toda a realidade
há fendas
que nem pela palavra
nem pela cor
alguma vez
saberás preencher.
In "Escrito a vermelho"
Editora Campo das Letras
Albano Martins
(N. 1930)
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