O VELHINHO
A J. Cesar Machado
Aquele que ali vai triste e cansado
E mais tremente que os juncais do brejo.
Foi outrora o mais belo e o mais amado
Entre os moços do antigo lugarejo.
Nas fitas desse lábio desmaiado
Quantas mulheres trémulas de pejo
Não sorveram os néctares do beijo
Dos trigais sobre o leito perfumado!
Hoje é velhinho, e fala dos franceses
Aos rapazes da escola, e às raparigas
Que não cansam de ouvi-lo... As mais das vezes
Sobre a ponte, sozinho, ouve as cantigas
Das que lavam no rio, e o olhar estende
Ao sol que ao longe na agonia esplende.
In “Nocturnos”
António Crespo
(1846-1883)
NÃO SEI, AMOR, SEQUER, SE TE CONSINTO
Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.
Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas
outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,
o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.
In «Tábua das Matérias - Poesia 1956-1991»,
Tertúlia - 1991
Pedro Tamen
(N. 1934)
AURORA BOREAL
Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
In “Poesias completas”
Edições João Sá da Costa
António Gedeão **
(1906-1997)
** Pseudónimo de Rómulo de Carvalho
PARÁFRASE
«Se me derem dois pães
vendo um e compro um lírio.»
Um lírio casto
onde canto a voz do sofrimento.
Pedaços arrulhantes duma ave caída...
Fico apenas com um
- um pão de vida-
e várias raízes e mais lírios
para enterrar na terra adormecida.
Faço então duma hora
o meu jardim.
Um jardim grácil, inédito:
um bocado de sol,
três quartos do teu céu,
um metro de varanda...
uns tantos rouxinóis
à minha espera...
Somente
um flor em cada primavera.
É tudo quanto é meu!
Um lírio, um pão
a cada refeição.
Sua em mim duramente
a terra trabalhada.
Sofro EM MIM
os gritos do jardim
o rio folgadamente
as suas largas horas de alegria.
Do lírio que ganhei
e do pão que vendi
quero dar
dois pães a muita gente!
In “Momento Vivo”
Ana Daniel **
(1928-2011)
** Pseudónimo de Maria de Lourdes d’Oliveira Canellas De Assunção Sousa
HINO À BELEZA
Onde quer que o fulgor da tua glória apareça,
– Obra de génio, flor d’heroísmo ou santidade,
Da Gioconda imortal na radiosa cabeça,
Num acto de grandeza augusta ou de bondade,
– Como um pagão subindo à Acrópole sagrada,
Vou de joelhos render-te o meu culto piedoso,
Ou seja o Herói que leva uma aurora na Espada,
Ou o Santo beijando as chagas do Leproso.
Essa luz sem igual com que sempre iluminas
Tudo o que existe em nós de grande e puro, veio
Do mesmo foco em mil parábolas divinas:
– Raios do mesmo olhar, ânsias do mesmo seio.
Alta revelação que, baixando em segredo,
O prisma humano quebra em ângulos dispersos,
Como a água a cair de rochedo em rochedo
Repete o mesmo som, mas em modos diversos.
É audácia no Herói; resignação no Santo;
Som e Cor, ondulando em formas imortais;
No mármore rebelde abre em folhas de acanto,
E esmalta de candura a flora dos vitrais.
Oh Beleza! Oh Beleza! as Horas fugitivas
Passam diante de ti, aladas como sonhos...
Que importa onde elas vão, doutra força cativas,
Se o Infinito luz nos teus olhos risonhos?!
Abrem flores, cantando, ao teu hálito ardente,
Brilham as aves como estrelas, e as estrelas,
Como flores enchendo a noite refulgente,
Deixam-se resvalar sobre quem vai colhê-las...
És tu que às ilusões dás juventude e forma,
Tu, que talvez do céu, d’onde vens, te recordes
Quando, a ouvir-nos chorar, a tua voz transforma
Dissonâncias de dor em imortais acordes.
Vejo-te muita vez, – luz d’aurora ou de raio, –
Como um gládio de fogo a avançar no horizonte;
Ou então, em manhãs transparentes de maio,
Náiade toda nua a fugir d’uma fonte.
Outras vezes, de noite e a ocultas, apareces,
Como ovelha que Deus do seu redil tresmalha,
Trazendo no regaço inesgotáveis messes,
Que Ele por tuas mãos sobre a miséria espalha...
Pudesse eu revelar-te em estrofes aladas,
Que partissem ao sol refulgindo em lavores,
Com rimas d’oiro, em blau e púrpura engastadas,
Como versos que vão desabrochando em flores!
Mas a língua não é sumptuosa bastante
Para nela deixar teu génio circunscrito;
Trago-te dentro em mim, sinto-te a cada instante,
E a voz nem mesmo tem a eloquência d’um grito!
Mas se para o teu culto, em esplendor externo,
Não encontro uma prece altamente expressiva,
Por ti meu coração arde d’um fogo eterno,
Como chama a tremer de lâmpada votiva!
In “Sol de Inverno”
António Feijó
(1859-1917)
O MENDIGO
Nas torres soberbas da grande cidade
O sol desmaiado não tarda morrer;
Recrescem as sombras: que importa? a vaidade
No manto das sombras envolve o prazer.
E o velho, entretanto, lá sobe a montanha,
Caminha, caminha, no cimo parou:
Em frigidas gottas o rosto lhe banha
Suor cupioso, que á terra baixou.
Quiz, antes da morte, nas serras distantes
Fitar indo os olhos cansados da luz;
A aldeia da infancia saudar por instantes,
Depois, satisfeito, depor sua cruz.
Olhou, e um suspiro de vaga saudade
Juntou a seus prantos em funda mudez;
Depois, ao volver-se, topando a cidade,
Que em ebrio tumulto folgava a seus pés:
«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto
«O pão da desgraça negaste cruel!
«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extincto
«Talvez lhe negáras á tumba infiel!»
E exhausto, e sem forças, caiu de joelhos;
E a fronte cansada firmou no bordão:
Passados instantes, os olhos vermelhos
Ao céo levantava, dizendo: perdão!
Caiam-lhe soltas, no collo vergado,
As longas madeixas em brancos anneis:
Que nobre semblante de rugas sulcado,
Sulcado dos annos, e mágoas crueis!
«Perdão para as vozes que solta a desgraça!
«Perdão para o triste, perdão, oh meu Deus!
«Bem hajas, que aos labios lhe roubas a taça
«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céos.
«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;
«Esposa não tenho, finou-se de dor;
«Amigos não vejo na face da terra:
«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!
«Ás portas do rico bati sem alento,
«Eu, rico n'outr'ora, mendigo por fim;
«O rico sem alma negou-me sustento,
«Aquelles que amava fugiram de mim.
«Vaguei pelo mundo, nas faces myrrhadas
«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;
«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas
«Pousei minha fronte nas lageas do chão.
«Que vezes a morte chamei sem alento,
«Cansado do annos, e fomes, e dor!
«A morte não veio: soffri meu tormento...
«Só hoje me ouviste: bem hajas, Senhor!
«Os homens e o mundo negaram-me os braços,
«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...
«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...
«Perdão para todos, perdão, oh meu Deus!»
E um ai derradeiro soltou d'ancidade,
Caindo por terra nas urzes do chão;
Ao longe, no seio da grande cidade,
Brilhava das festas nocturno clarão.
(Mantém a grafia original)
In “Poesias” - 1917
Publicações J. Ferreira dos Santos
Soares Passos
(1826-1860)
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