Domingo, 31 de Julho de 2016

Recordando... António Crespo

O VELHINHO

 

A J. Cesar Machado

 

Aquele que ali vai triste e cansado

E mais tremente que os juncais do brejo.

Foi outrora o mais belo e o mais amado

Entre os moços do antigo lugarejo.

 

Nas fitas desse lábio desmaiado

Quantas mulheres trémulas de pejo

Não sorveram os néctares do beijo

Dos trigais sobre o leito perfumado!

 

Hoje é velhinho, e fala dos franceses

Aos rapazes da escola, e às raparigas

Que não cansam de ouvi-lo... As mais das vezes

 

Sobre a ponte, sozinho, ouve as cantigas

Das que lavam no rio, e o olhar estende

Ao sol que ao longe na agonia esplende.

 

In “Nocturnos”

 

António Crespo

(1846-1883)

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Segunda-feira, 25 de Julho de 2016

Recordando... Pedro Tamen

NÃO SEI,  AMOR,  SEQUER,  SE TE CONSINTO

 

Não sei, amor, sequer, se te consinto

ou se te inventas, brilhas, adormeces

nas palavras sem carne em que te minto

a verdade intemida em que me esqueces.

 

Não sei, amor, se as lavas do vulcão

nos lavam, veras, ou se trocam tintas

dos olhos ao cabelo ou coração

de tudo e de ti mesma. Não que sintas

 

outra coisa de mais que nos feneça;

mas só não sei, amor, se tu não sabes

que sei de certo a malha que nos teça,

 

o vento que nos leves ou nos traves,

a mão que te nos dê ou te nos peça,

o princípio de sol que nos acabes.

 

In «Tábua das Matérias - Poesia 1956-1991»,

Tertúlia - 1991

 

Pedro Tamen

(N. 1934)

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Terça-feira, 19 de Julho de 2016

Recordando... António Gedeão

AURORA BOREAL

 

Tenho quarenta janelas

nas paredes do meu quarto.

Sem vidros nem bambinelas

posso ver através delas

o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do Sol,

por outra a luz do luar,

por outra a luz das estrelas

que andam no céu a rolar.

Por esta entra a Via Láctea

como um vapor de algodão,

por aquela a luz dos homens,

pela outra a escuridão.

Pela maior entra o espanto,

pela menor a certeza,

pela da frente a beleza

que inunda de canto a canto.

Pela quadrada entra a esperança

de quatro lados iguais,

quatro arestas, quatro vértices,

quatro pontos cardeais.

Pela redonda entra o sonho,

que as vigias são redondas,

e o sonho afaga e embala

à semelhança das ondas.

Por além entra a tristeza,

por aquela entra a saudade,

e o desejo, e a humildade,

e o silêncio, e a surpresa,

e o amor dos homens, e o tédio,

e o medo, e a melancolia,

e essa fome sem remédio

a que se chama poesia,

e a inocência, e a bondade,

e a dor própria, e a dor alheia,

e a paixão que se incendeia,

e a viuvez, e a piedade,

e o grande pássaro branco,

e o grande pássaro negro

que se olham obliquamente,

arrepiados de medo,

todos os risos e choros,

todas as fomes e sedes,

tudo alonga a sua sombra

nas minhas quatro paredes.

 

Oh janelas do meu quarto,

quem vos pudesse rasgar!

Com tanta janela aberta

falta-me a luz e o ar.

 

In “Poesias completas”

Edições João Sá da Costa

 

António Gedeão **

(1906-1997)

 

** Pseudónimo de Rómulo de Carvalho

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Quarta-feira, 13 de Julho de 2016

Recordando... Ana Daniel

PARÁFRASE

 

«Se me derem dois pães

vendo um e compro um lírio.»

Um lírio casto

onde canto a voz do sofrimento.

Pedaços arrulhantes duma ave caída...

Fico apenas com um

- um pão de vida-

e várias raízes e mais lírios

para enterrar na terra adormecida.

 

Faço então duma hora

o meu jardim.

Um jardim grácil, inédito:

um bocado de sol,

três quartos do teu céu,

um metro de varanda...

uns tantos rouxinóis

à minha espera...

Somente

um flor em cada primavera.

 

É tudo quanto é meu!

Um lírio, um pão

a cada refeição.

 

Sua em mim duramente

a terra trabalhada.

Sofro EM MIM

os gritos do jardim

o rio folgadamente

as suas largas horas de alegria.

 

Do lírio que ganhei

e do pão que vendi

quero dar

dois pães a muita gente!

 

In “Momento Vivo”

 

Ana Daniel **

(1928-2011)

 

** Pseudónimo de Maria de Lourdes d’Oliveira Canellas De Assunção Sousa

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Quinta-feira, 7 de Julho de 2016

Recordando... António Feijó

HINO À BELEZA

 

Onde quer que o fulgor da tua glória apareça,

– Obra de génio, flor d’heroísmo ou santidade,

Da Gioconda imortal na radiosa cabeça,

Num acto de grandeza augusta ou de bondade,

 

– Como um pagão subindo à Acrópole sagrada,

Vou de joelhos render-te o meu culto piedoso,

Ou seja o Herói que leva uma aurora na Espada,

Ou o Santo beijando as chagas do Leproso.

 

Essa luz sem igual com que sempre iluminas

Tudo o que existe em nós de grande e puro, veio

Do mesmo foco em mil parábolas divinas:

– Raios do mesmo olhar, ânsias do mesmo seio.

 

Alta revelação que, baixando em segredo,

O prisma humano quebra em ângulos dispersos,

Como a água a cair de rochedo em rochedo

Repete o mesmo som, mas em modos diversos.

 

É audácia no Herói; resignação no Santo;

Som e Cor, ondulando em formas imortais;

No mármore rebelde abre em folhas de acanto,

E esmalta de candura a flora dos vitrais.

 

Oh Beleza! Oh Beleza! as Horas fugitivas

Passam diante de ti, aladas como sonhos...

Que importa onde elas vão, doutra força cativas,

Se o Infinito luz nos teus olhos risonhos?!

 

Abrem flores, cantando, ao teu hálito ardente,

Brilham as aves como estrelas, e as estrelas,

Como flores enchendo a noite refulgente,

Deixam-se resvalar sobre quem vai colhê-las...

 

És tu que às ilusões dás juventude e forma,

Tu, que talvez do céu, d’onde vens, te recordes

Quando, a ouvir-nos chorar, a tua voz transforma

Dissonâncias de dor em imortais acordes.

 

Vejo-te muita vez, – luz d’aurora ou de raio, –

Como um gládio de fogo a avançar no horizonte;

Ou então, em manhãs transparentes de maio,

Náiade toda nua a fugir d’uma fonte.

 

Outras vezes, de noite e a ocultas, apareces,

Como ovelha que Deus do seu redil tresmalha,

Trazendo no regaço inesgotáveis messes,

Que Ele por tuas mãos sobre a miséria espalha...

 

Pudesse eu revelar-te em estrofes aladas,

Que partissem ao sol refulgindo em lavores,

Com rimas d’oiro, em blau e púrpura engastadas,

Como versos que vão desabrochando em flores!

 

Mas a língua não é sumptuosa bastante

Para nela deixar teu génio circunscrito;

Trago-te dentro em mim, sinto-te a cada instante,

E a voz nem mesmo tem a eloquência d’um grito!

 

Mas se para o teu culto, em esplendor externo,

Não encontro uma prece altamente expressiva,

Por ti meu coração arde d’um fogo eterno,

Como chama a tremer de lâmpada votiva!

 

In “Sol de Inverno”

 

António Feijó

(1859-1917)

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Sexta-feira, 1 de Julho de 2016

Recordando... Soares Passos

O MENDIGO

 

Nas torres soberbas da grande cidade

O sol desmaiado não tarda morrer;

Recrescem as sombras: que importa? a vaidade

No manto das sombras envolve o prazer.

 

E o velho, entretanto, lá sobe a montanha,

Caminha, caminha, no cimo parou:

Em frigidas gottas o rosto lhe banha

Suor cupioso, que á terra baixou.

 

Quiz, antes da morte, nas serras distantes

Fitar indo os olhos cansados da luz;

A aldeia da infancia saudar por instantes,

Depois, satisfeito, depor sua cruz.

 

Olhou, e um suspiro de vaga saudade

Juntou a seus prantos em funda mudez;

Depois, ao volver-se, topando a cidade,

Que em ebrio tumulto folgava a seus pés:

 

«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto

«O pão da desgraça negaste cruel!

«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extincto

«Talvez lhe negáras á tumba infiel!»

 

E exhausto, e sem forças, caiu de joelhos;

E a fronte cansada firmou no bordão:

Passados instantes, os olhos vermelhos

Ao céo levantava, dizendo: perdão!

 

Caiam-lhe soltas, no collo vergado,

As longas madeixas em brancos anneis:

Que nobre semblante de rugas sulcado,

Sulcado dos annos, e mágoas crueis!

 

«Perdão para as vozes que solta a desgraça!

«Perdão para o triste, perdão, oh meu Deus!

«Bem hajas, que aos labios lhe roubas a taça

«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céos.

 

«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;

«Esposa não tenho, finou-se de dor;

«Amigos não vejo na face da terra:

«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!

 

«Ás portas do rico bati sem alento,

«Eu, rico n'outr'ora, mendigo por fim;

«O rico sem alma negou-me sustento,

«Aquelles que amava fugiram de mim.

 

«Vaguei pelo mundo, nas faces myrrhadas

«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;

«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas

«Pousei minha fronte nas lageas do chão.

 

«Que vezes a morte chamei sem alento,

«Cansado do annos, e fomes, e dor!

«A morte não veio: soffri meu tormento...

«Só hoje me ouviste: bem hajas, Senhor!

 

«Os homens e o mundo negaram-me os braços,

«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...

«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...

«Perdão para todos, perdão, oh meu Deus!»

 

E um ai derradeiro soltou d'ancidade,

Caindo por terra nas urzes do chão;

Ao longe, no seio da grande cidade,

Brilhava das festas nocturno clarão.

 

(Mantém a grafia original)

 

In “Poesias” - 1917

Publicações J. Ferreira dos Santos

 

Soares Passos

(1826-1860)

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