A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO
A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da acção sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.
Cancioneiro
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” - 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
(1888-1935)
LISBOA COM SUAS CASAS
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força de diferente, isto é monótono.
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto,
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos.
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.
Poesias de Álvaro Campos
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses - Editora Ulisses
Pág. 199
Álvaro de Campos
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
O AMOR É UMA COMPANHIA
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
O Pastor Amoroso
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” - 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses - Editora Ulisses
Pág. 113
Alberto Caeiro
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
CORPOS
O meu corpo é o abismo entre eu e eu.
Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto
As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem
Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro
A hora passa. Mas meu sonho é meu.
s.d.
In “Pessoa Inédito”
Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes
Livros Horizonte - 1933
Pág. 7
Fernando Pessoa
(1888-1935)
PONHO NA ALTIVA MENTE O FIXO ESFORÇO
Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E às suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.
Odes de Ricardo Reis
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” - 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses - Editora Ulisses
Pág. 134
Ricardo Reis
Heterónimo de Fernando Pessoa (1888-1935)
ESTRANHEZAS
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar,
Sempre constantes na alternância
São um sorriso e um suspirar:
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar.
Eles são flores em vasos guardadas
Que a arte humana não sabe fazer,
O estranho é forte como chicotadas
E o anormal faz-nos estremecer.
Eles são flores em vasos guardadas
Que a arte humana não sabe fazer.
Têm o ardor da paz perturbada,
Dos inquietos salões da alegria,
esta é a fragrância por eles usada
Que ora nos anima, ora nos sacia:
Têm o odor da paz perturbada,
Dos inquietos salões da alegria.
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar —
O da humana carne que, na mudança
Se fez corrupta sem se queixar:
O estranho e o anormal
Têm um aroma peculiar.
1906
In “Poesia”
Edição e tradução de Luísa Freire
Assírio & Alvim – 1999
Alexander Search
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