MEDITAÇÂO
O dia de hoje vem triste.
Eu penso que a terra dorme
Num grande caixão de chumbo;
São as pessoas os vermes,
Que vão roendo,
E as árvores são as flores
Que vão murchando
Sobre o cadáver imenso
Que me parece pequeno.
Também eu durmo este sono
E dormindo
Vou roendo o magro pomo
Que tombou do infinito,
No caixão,
Feito de chumbo e granito.
E roendo
A boca me sabe a mim
- Fica-me um travo de fim
De eternidade.
Neste silêncio,
Grito a minha ambição biológica do aborto
Que quis nascer completo
E veio feto
E torto...
Grito a minha aflição patética do morto
Que quer a tampa do caixão aberta;
Grito a minha surdez-mudez que escuta
A luta do dividendo,
Travada entre os vermes
Que vão roendo!
In “Líricas Portuguesas” - I Volume
Selecção, Prefácios e apresentação de Jorge de Sena
Edições 70 -1984
Políbio Gomes dos Santos
(1911-1939)
AMEI-TE COM AS PALAVRAS
Amei-te com as palavras
com o verde ramo das palavras
e a pomba assustada do coração.
Amei-te com os olhos
o espelho doido dos olhos
e a sede inextinguível da boca.
Amei-te com a pele
as pernas e os pés
e todos os gritos que trago
por debaixo da roupa.
Amei-te com as mãos
As mesmas com que te digo adeus.
In “As Pequenas Palavras”
Guimarães Editores - 1987
Rosa Lobato de Faria
(1932-2010)
POEMA QUASE APOSTÓLICO
Está sereno o poeta
Desprende-se-lhe dos ombros e cai
depois em pregas por ele abaixo a manhã
Não pertencem ao dia os gestos que ele tem
não morreram na noite seus assombrosos passos
Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda
de crianças de atitudes desmedidas
que o vento varreu e parque algum queria
E abre os braços para deixar cair na cidade
um ano favorável ao senhor
E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras
Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar
In "Cidadão de longe e de ninguém"
Antologia Poética
Círculo de Leitores
Ruy Belo
(1933-1978)
O LUGAR DO MORTO
ao teu lado, no lugar do morto, enquanto
conduzes a conversa a uma frase sem
preparação. chegámos tarde à praia,
como a quase tudo. o vento levanta o
pó do parque de estacionamento e não
saímos do carro. não sei a resposta certa
e por isso represento mal o meu papel secundário,
limito-me a ficar em silêncio, onde
sempre me senti mais confortável.
um lugar sombrio, discreto, abrigado
e ainda assim, segundo dizem, o mais perigoso.
In “Livre Arbítrio”
Averno - 2009
Tiago Araújo
(N. 1973)
VARANDAS
A procissão dividiu a rua a meio,
como é costume fazer-se a uma noz.
Na varanda de Dona Joaquina, a colcha
mais bonita da cidade, peça antiga
de família, que em tempos lhe foi dada
para juntar ao enxoval.
Em meados da década de cinquenta,
o Senhor Gouveia e a Dona Joaquina
estiveram, vai-não-vai, para se entender.
Depois, enfim, aquele jeito de poeta,
aquele modo de tirar o chapéu
a uma senhora... E nunca mais se falaram
desde então, razões certamente ponderosas
que ninguém conhece ao certo.
Mas, no dia em que passa a procissão,
o Senhor Gouveia pode olhar, demorado,
a sua musa. Esperará por si, ainda hoje,
a solteira Joaquina? E até que ponto
era capaz de lhe dizer do seu desejo
(da maneira como o diz em sonetos
desde sempre guardados no armário)?
Entretanto, examina o velho busto
recortado pela colcha que jamais o acolheu.
In "Senhor Gouveia"
Averno - 2006
Vítor Nogueira
(N.1966)
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