PRESÍDIO
Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memóra o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
In "Eros de Passagem, Poesia Erótica Contemporânea",
Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade,
Ed. Campo das Letras - 1997
David Mourão-Ferreira
(1927 - 1996)
DE SÚBITO
De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos,
mal viu a menina atavessar a rua,
saltou num ímpeto de besouro
e despiu-a toda...
E a Que-Sempe-Tanto-Se-Recata
ficou nua,
sonambulamente nua,
com um seio de ouro
e outro de prata.
In "Eros de Passagem, Poesia Erótica Contemporânea"
Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade
Ed. Campo das Letras - 1997
José Gomes Ferreira
(1900 - 1985)
CORPOS HÁ QUE TERMINAM EM PLENO MAR
Corpos há que terminam em pleno mar.
São corpos e são manhãs.
São corpos e são agosto atravessados pelo sol
por breves ventos.
Abandonado limite
quem levando aos lábios a chávena de café
retém o gesto o vidro os dedos.
Nostálgico café por horas e horas repetido.
In "Antologia Poética 1977-1994"
Editorial Presença
João Miguel Fernandes Jorge
(N. 1943)
PARA UM AMIGO TENHO SEMPRE UM RELÓGIO
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-iris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
In "Viagem Através duma Nebulosa"
Editora Ática - 1960
António Ramos Rosa
(1924 - 2013)
NA BRANCA E AZUL LUZ DE ÉVORA
É assim a luz, encantamento e euforia.
Nela estou intenso e exausto, ela me acolhe
entre muros,
dela acolho o tempo, a finíssima alegria
do tempo. É nas suas margens que vive
esse rosto infinito, a altura do anjo
debruçado na solidão,
na branca e azul luz de Évora, no sul,
onde apetece a alegria, uma casa abrigada
da tempestade.
In "Metade da Vida"
Quasi Edições
Francisco José Viegas
(N. 1962)
VAI-SE A LASCIVA MÃO
vai-se a lasciva mão devagarinho
no biquinho do peito modelando
como nuns versos conhecidos quando
uma mulher a meio do caminho
era de vento e nuvens, sombras, vinho,
e sonoras risadas como um bando.
os dedos lestos vão desenredando
roupa, cabelos, fitas, desalinho.
a noite desce e a nudez define-a
por contrastes de luz e de negrume
ponto por ponto, alínea por alínea.
memória e amor e música e ciúme
transformados nos cachos da glicínia,
macerando no verão sombra e perfume.
In "Eros de Passagem, Poesia Erótica Contemporânea",
Selecção e prefácio de Eugénio de Andrade,
Ed. Campo das Letras - 1997
Vasco Graça Moura
(1942 - 2014)
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