Quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2015

Recordando... Guerra Junqueiro

A MOLEIRINHA

 

Pela estrada plana, toque, toque, toque,

Guia o jumentinho uma velhinha errante.

Como vão ligeiros, ambos a reboque,

Antes que anoiteça, toque, toque, toque,

A velhinha atrás, o jumentito adiante!...

 

Toque, toque, a velha vai para o moinho,

Tem oitenta anos, bem bonito rol!...

E contudo alegre como um passarinho,

Toque, toque, e fresca como o branco linho,

De manhã nas relvas a corar ao sol.

 

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,

O jerico ruço duma linda cor;

Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,

Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca

Com o galho verde duma giesta em flor.

 

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,

Toque, toque, toque, que recordação!

Minha avó ceguinha se me representa...

Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,

Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

 

Toque, toque, toque, lindo burriquito,

Para as minhas filhas quem mo dera a mim!

Nada mais gracioso, nada mais bonito!

Quando a virgem pura foi para o Egipto,

Com certeza ia num burrico assim.

 

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!

Nascem as estrelas, vivas, em cardume...

Toque, toque, toque, e quando o galo canta,

Logo a moleirinha, toque, se levanta,

P’ra vestir os netos, p’ra acender o lume...

 

Toque, toque, toque, como se espaneja,

Lindo o jumentinho pela estrada chã!

Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,

Dá-me até vontade de o levar à igreja,

Baptizar-lhe a alma, p’ra a fazer cristã!

 

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,

Toda, toda branca, vai numa frescata...

Foi enfarinhada, sorridente amiga,

Pela mó da azenha com farinha triga,

Pelos anjos loiros com luar de prata!...

 

Toque, toque, como o burriquito avança!

Que prazer d’outrora para os olhos meus!

Minha avó contou-me quando fui criança,

Que era assim tal qual a jumentinha mansa

Que adorou nas palhas o menino Deus...

 

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,

Moleirinha branca, branca de luar!...

Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,

Como estremunhados querubins divinos,

Os olhitos meigos para a ver passar...

 

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,

Entre os milhões d’astros o luar sem véu,

O burrico pensa: Quanto milho loiro!

Quem será que mói estas farinhas d’oiro

Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

 

in "Os Simples"

 

Guerra Junqueiro

(1850 – 1923)

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Quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015

Recordando... Eugénio de Andrade

Soneto XXV

 

Shelley sem anjos e sem pureza,

aqui estou à tua espera nesta praça,

onde não há pombos mansos mas tristeza

e uma fonte por onde a água já não passa.

 

Das árvores não te falo pois estão nuas;

das casas não vale a pena porque estão

gastas pelo relógio e pelas luas

e pelos olhos de quem espera em vão.

 

De mim podia falar-te,mas não sei

que dizer-te desta história de maneira

que te pareça natural a minha voz.

 

Só sei que passo aqui a tarde inteira

tecendo estes versos e a noite

que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós

 

(As Mãos e os Frutos)

 

In “Antologia Breve”

5ª ed. – Outubro.1985

Editora Limiar

 

Eugénio de Andrade **

(1923 – 2005)

 

** Pseudónimo de José Fontinhas

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Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2015

Recordando... Fernando Namora

TERRA

 

Onde ficava o mundo?

Só pinhais, matos, charnecas e milho

para a fome dos olhos.

Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.

E o mar? E a cidade? E os rios?

Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,

onde chiam carros de bois e há poças de chuva.

Onde ficava o mundo?

Nem a alma sabia julgar.

Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.

Em cada dia o povo abraçava outro povo.

E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:

a estrada branca e menina é uma serpente ondulada

e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

 

in "Novo cancioneiro"

 

Fernando Namora

(1919-1989)

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Sábado, 7 de Fevereiro de 2015

Recordando... Manuela Amaral

CANÇONETA

 

Não me importa

O que se saiba...

- Só me importa

O que te digo:

 

Já andei de braço dado,

Em braços desconhecidos,

Só para ter a ilusão

Que caminhava a teu lado

De braço dado contigo...

 

in "Hino Proibido"

Edição da Autora

 

Manuela Amaral

(1934-1995)

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Domingo, 1 de Fevereiro de 2015

Recordando... Miguel Torga

BIOGRAFIA

 

Sonho, mas não parece.

Nem eu quero que pareça.

É por dentro que eu gosto que aconteça

A minha vida.

Íntima, funda, como um sentimento

De que se tem pudor.

Vulcão de exterior

Tão apagado,

Que um pastor

Possa sobre ele apascentar o gado.

 

Mas os versos, depois,

Frutos do sonho e dessa mesma vida,

É quase à queima-roupa que os atiro

Contra a serenidade de quem passa.

Então, já não sou eu que testemunho

A graça

Da poesia:

É ela, prisioneira,

Que, vendo a porta da prisão aberta,

Como chispa que salta da fogueira,

Numa agressiva fúria se liberta.

 

In “Antologia Poética”

Edições Dom Quixote

 

Miguel Torga **

(1907 – 1995)

 

** Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha

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