AS RAPARIGAS LÁ DE CASA
Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa
Habitação das Chuvas
In “121 Poemas Escolhidos”
Editor Salamandra
Emanuel Félix
1936 – 2004
SONETO DA CONQUISTA
Ó grandes cavaleiros afonsinos,
bailando no terreiro da capela,
deixai moças da Maia e verdes pinos,
que é tempo agora de saltar p'ra sela!
E rompe a galopada ao som dos sinos,
– e galga matagais que a morte gela…
Os que tornarem, graves peregrinos,
irão depois em voto a Compostela.
"Por Santiago!" – E a terra se dilata.
O Tejo na distancia é como prata,
a cuja orla a hoste se detem.
Brilha o sinal de Christo sobre os peitos.
E os cavaleiros, sempre insatisfeitos,
voltam scismando no que está p'ra além…
In “Contemporanea”
Director – José Pacheco
Redactor Principal – Oliveira Mouta
Editor – Agostinho Fernandes
Ano I – Volume II – Nº.6 - Ano 1922
Pág. 133
António Sardinha
1887 – 1925
Mantém a grafia original
DO POEMA
O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes –
o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.
In “Ode & Ceia” – Poesia 1955-1984
Publicações Dom Quixote – 1985
Casimiro de Brito
N. 1938
PLÁGIO PARA AMADORES
Diz-me de amor ardente se não ver,
metáfora que em verso meu somente
me traz de novo a ferida mais contente
e a dor que desatina sem doer.
Teu querer é metonímia de quem quer
a si se convencer do que já sente,
abrir e reabrir constantemente
o verbo que se perde em querer saber.
Persegues vencedora o invencível,
e partes minha vida em duas partes:
nenhuma me pertence e o impossível
reparte-se por ti com tantas artes
que nada se assemelha a tal desnível
de amar essa loucura, os baluartes.
Amor é água ardente enquanto arde.
In “Livro de Receitas”
Campo de Letras – 2000
Luís Adriano Carlos
N. 1959
A MÃE
I
Sua ternura:
Com que alvoroço trémulo e espectante
chega a maternidade um dia, – como
da simples flôr se desentranha o gomo
a um raio de sol mais perturbador.
Vão-se os flancos erguendo na ondeante
vida que irrompe altiva, num assomo.
O seio branco amadurece em pomo
que o filho, ancioso, já não está distante.
No futuro que a Mãe lhe vai a erguer
a terra é pouca já p’ra êle ver
e pequeno o universo p’ra sonhar.
Mas, ei-lo enfim que chega... E a terra e o espaço
se circunscrevem no minguado abraço
em que os seus labios se unem p’ra o beijar...
II
Sua bondade:
Um filho vem, mais um e outro ainda.
Fonte da vida, a vida corre enquanto
do seu amor jorrar, em flúido, o encanto
que aos olhos d’outro amor a torna linda.
Cada vida que vem ao mundo em pranto
é p’ra o seu amplo coração bem vinda.
E já não sabe (se esse amar é tanto!)
onde o filho começa e onde a mãe finda.
E como em roda o azul do ceo pendente
se curva e pousa em terra e pensa a gente
que êle está perto – e é a Imensidade,
assim a alma da Mãe – ilimitada,
abraça o filho, mas, aperfilhada,
passa no lento abraço – a Humanidade.
In Revista “ÁMANHÔ
(Revista popular de orientação racional)
I Série – Nº 1 – 1 de Junho de 1909 – Pág. 10
Directôres – Grácio Ramos & Pinto Quartim
Manuel Ribeiro
1879 – 1941
Mantém a grafia original
MÃE, EU QUERO IR-ME EMBORA
Mãe, eu quero ir-me embora - a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.
Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim - tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.
Mãe, eu quero ir-me embora - nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-m
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.
Mãe, eu vou-me embora - esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua - a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.
In 'O Canto do Vento nos Ciprestes'
Editora Gótica
Maria do Rosário Pedreira
N.1959
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