Domingo, 31 de Agosto de 2014

Recordando... Fiama Hasse Pais Brandão

SEBASTIÃO REI

 

Não chegou de manto

nem com lenço e pranto

 

Não entrou a barra

com pendão e amarra

 

Não veio em ginete

com a sua gente

 

Não voltou da guerra

com os mortos dela

 

Não voltou da púrpura

com ferida ou sutura

 

Não voltou de coroa

nem ceptro a Lisboa

 

Não veio da batalha

com trajo de gala

 

Não trouxe burel

nem viseira e elmo

 

Nem trajou de estopa

nem demandou porto

 

Não veio doente

nem com mantimentos

 

Não chegou na frota

ou deu à costa

 

Nem alçou pendão

nem selo de mão

 

Nem veio às matinas

com saio de linho

 

Nem calçou pelica

com fivela e vira

 

Não voltou ao cais

nem em mês ou ano

 

Perdeu arrais

e tendas de pano

 

In “Barcas Novas”

Editora Ulisseia

 

Fiama Hasse Pais Brandão

1938 – 2007   

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Segunda-feira, 25 de Agosto de 2014

Recordando... Florbela Espanca

SE TU VIESSES VER-ME…

 

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus barcos...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo
E os meus braços se estendem para ti...

 

Charneca em Flor - 1930

 

In “Verbo Clássicos – Florbela – Sonetos”

Editora Ulisseia e Editorial Verbo

 

Florbela Espanca

1894 – 1930

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Terça-feira, 19 de Agosto de 2014

Recordando... António Feijó

O AMOR E O TEMPO

 

Pela montanha alcantilada

Todos quatro em alegre companhia,

O Amor, o Tempo, a minha Amada

E eu subíamos um dia.

 

Da minha Amada no gentil semblante

Já se viam indícios de cansaço;

O Amor passava-nos adiante

E o Tempo acelerava o passo.

 

– «Amor! Amor! mais devagar!

Não corras tanto assim, que tão ligeira

Não pode com certeza caminhar

A minha doce companheira!»

 

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,

Abrem as asas trémulas ao vento...

– «Por que voais assim tão apressados?

Onde vos dirigis?» – Nesse momento.

 

Volta-se o Amor e diz com azedume:

– «Tende paciência, amigos meus!

Eu sempre tive este costume

De fugir com o Tempo... Adeus! Adeus!»

 

In “Sol de Inverno”

Biblioteca de Autores Portugueses

INCM - Imprensa Nacional – 1966

 

António Feijó

1859 – 1917

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Quarta-feira, 13 de Agosto de 2014

Recordando... Eugénio de Andrade

ADEUS

 

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.

 

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;

era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

 

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.

E eu acreditava.

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

 

Mas isso era no tempo dos segredos,

no tempo em que o teu corpo era um aquário,

era no tempo em que os meus olhos

eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

 

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,

já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.

 

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

 

Adeus.

 

(Os Amantes Sem Dinheiro)

 

In “Antologia Breve”

Editora Limiar – Outubro.1985

 

Eugénio de Andrade

1923 – 2005

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Quinta-feira, 7 de Agosto de 2014

Recordando... Maria Teresa Horta

JOELHO

 

Ponho um beijo

demorado

no topo do teu joelho

 

Desço-te a perna

arrastando

a saliva pelo meio

 

Onde a língua

segue o trilho

até onde vai o beijo

 

Não há nada

que disfarce

de ti aquilo que vejo

 

Em torno um mar

tão revolto

no cume o cimo do tempo

 

E os lençóis desalinhados

como se fosse

de vento

 

Volto então ao teu

joelho

entreabrindo-te as pernas

 

Deixando a boca

faminta

seguir o desejo nelas

 

In “Só de Amor”

Quetzal Editores -1999 

 

Maria Teresa Horta

N. 1937

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Sexta-feira, 1 de Agosto de 2014

Recordando... Isabel Seixas

PRECISO URGENTEMENTE DE UM POEMA

 

Preciso urgentemente de um poema... analgésico

Que me tire a dor da alma esse sortilégio

Poema de essências que me indique uma saída

Nesta vida de evidências que me acusam estar perdida

Que me abra portas e me indique o norte

Que me ajude a encarar a sorte

A que estou votada

Transformar o desamor em mulher amada

Poema solução dos momentos em vão...

Que surja espontaneamente para nos salvar

Das turbulências difíceis de conseguir amainar

O mote para prosseguir... em gélidos dias sem provir

Poema que te invada em momentos de solidão

Que conceba uma verdade capaz de te tornar são

Poema num sussurro... mensagem a pairar

A função dessa clausura... é a de te libertar

 

In “Resquícios de Luz”

Colecção Sinais de Poesia

Edição de Formasau – Coimbra

 

Isabel Seixas

N. 1961

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