Segunda-feira, 30 de Junho de 2014

Recordando... Ricardo Reis

LENTA, DESCANSA A ONDA QUE A MARÉ DEIXA

 

Lenta, descansa a onda que a maré deixa.

Pesada cede. Tudo é sossegado.

      Só o que é de homem se ouve.

      Cresce a vinda da lua.

Nesta hora, Lídia ou Neera Ou Cloe,

Qualquer de vós me é estranha, que me inclino

      Para o segredo dito

      Pelo silêncio incerto.

Tomo nas mãos, como caveira, ou chave

De supérfluo sepulcro, o meu destino,

      E ignaro o aborreço

      Sem coração que o sinta.

 

6 - 7 - 1927

 

(Odes de Ricardo Reis)

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”

3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Ricardo Reis/Fernando Pessoa

1887 – 1936

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Quarta-feira, 25 de Junho de 2014

Recordando... Fernando Pessoa

ABDICAÇÃO

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.  
                                       Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.  

 

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços 

 

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.  

 

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.  

 

Cancioneiro

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”

3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Fernando Pessoa

1888 – 1935

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Quinta-feira, 19 de Junho de 2014

Recordando... Alberto Caeiro

VIVE, DIZES, NO PRESENTE

 

Vive, dizes, no presente,

Vive só no presente.

 

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;

Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

 

O que é o presente?

É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.

É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.

Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

 

Não quero incluir o tempo no meu esquema.

Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar

nelas como coisas.

Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

 

Eu nem por reais as devia tratar.

Eu não as devia tratar por nada.

 

Eu devia vê-las, apenas vê-las;

Vê-las até não poder pensar nelas,

Vê-las sem tempo, nem espaço,

Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. 

É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

 

Poemas Inconjuntos

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição

Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Alberto Caeiro/Fernando Pessoa

1889 – 1915

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Sexta-feira, 13 de Junho de 2014

Recordando... Fernando Pessoa

A MINHA VIDA É UM BARCO ABANDONADO

 

A minha vida é um barco abandonado

Infiel, no ermo porto, ao seu destino.

Por que não ergue ferro e segue o atino

De navegar, casado com o seu fado?

 

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado

Torne seu vulto em velas; peregrino

Frescor de afastamento, no divino

Amplexo da manhã, puro e salgado.

 

Morto corpo da acção sem vontade

Que o viva, vulto estéril de viver,

Boiando à tona inútil da saudade.

 

Os limos esverdeiam tua quilha,

O vento embala-te sem te mover,

E é para além do mar a ansiada Ilha.

 

Cancioneiro

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”

3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Fernando Pessoa

1888 – 1935

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Sábado, 7 de Junho de 2014

Recordando... Álvaro de Campos

CRUZ NA PORTA DA TABACARIA!

 

Cruz na porta da tabacaria!

Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Quem era? Ora, era quem eu via.

Todos os dias o via. Estou

Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referência de quem sou.

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.

 

Meu coração tem pouca alegria,

E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!

Desde ontem a cidade mudou.

 

Mas ao menos a ele alguém o via,

Ele era fixo, eu, o que vou,

Se morrer, não falto, e ninguém diria:

Desde ontem a cidade mudou.

 

(14-10-1930)

 

Poesias de Álvaro Campos

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição

Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses

Editora Ulisses

 

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa

1890 – 1935

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Domingo, 1 de Junho de 2014

Recordando... Fernando Pessoa

HORA ABSURDA

 

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...

E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

 

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

 

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...

Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,

E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

 

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...

Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...

No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

 

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...

Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto

Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

 

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,

Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,

Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,

E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

 

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...

Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...

Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...

E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

 

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!

Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam

Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

 

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono

da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada

E sente saudades de si ante aquele lugar-outono...

Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

 

A doida partiu todos os candelabros glabros,

Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...

E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...

E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

 

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar

Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido...

O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,

E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

 

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...

As próprias sombras estão mais tristes... Ainda

Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora

Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

 

Todos os casos fundiram-se na minha alma...

As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...

Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,

E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

 

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas

Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente

Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...

Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

 

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!

Todas as princesas sentiram o seio oprimido...

Da última janela do castelo só um girassol

Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

 

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...

Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...

Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...

Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

 

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te

E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...

Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te, 

E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

 

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?...

Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque-

Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

 

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...

Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,

E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

 

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...

Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,

O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

 

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,

Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

Endireitar à força a curva dos horizontes,

E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

 

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...

Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem

O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

 

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...

Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,

E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

 

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

 

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

 

04/07/1913

 

Cancioneiro

 

In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”

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