AURORA
A poesia não é voz — é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
voo sem pássaro dentro.
"Voo sem pássaro dentro"
In “Poesias Completas”
INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda
Adolfo Casais Monteiro
1908 – 1972
LETRA PARA UM HINO
É possível falar sem um nó na garganta.
É possível amar sem que venham proibir.
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.
É possível andar sem olhar para o chão.
É possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetece dizer não, grita comigo: não!
É possível viver de outro modo.
É possível transformar em arma a tua mão.
É possível viver o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.
Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre, livre, livre.
In “O Canto e as Armas”
Publicações Dom Quixote
Manuel Alegre
N. 1936
LEDA SERENIDADE DELEITOSA
Leda serenidade deleitosa,
que representa em terra um paraíso;
entre rubis e perlas doce riso,
debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa.
Presença moderada e graciosa,
onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser formosa:
fala de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa,
repouso nela alegre e comedido;
Estas as armas são com que me rende
e me cativa Amor; mas não que possa
despojar-me da glória de rendido.
In “SE TUDO FOSSE IGUAL A TI”
Poesia de Luís de Camões
Editora Alma Azul – Janeiro 2007
Luís Vaz de Camões
1524 (?) – 1580
LIVRO, SE LUZ DESEJAS, MAL TE ENGANAS
Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!
Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.
Ah! não te posso ter! deixa ir comprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.
Dirás que a pesar meu fostes fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.
In “Poemas Lusitanos” – 1598
Mandado publicar por seu filho, Miguel Leite Ferreira
António Ferreira
1528 – 1569
MÃE QUEREMOS AINDA PASSEAR
mãe queremos ainda passear
e já não temos quem nos leve
perdeu-se o olhar que nos guiava
e explicava os caminhos
perdeu-se a mão dobrada pela
lâmina de tanto trabalhar que
nos amparava se as curvas
da estrada anoiteciam
mãe já não temos a camioneta
azul onde construímos casas
e vivemos tanta vida
mãe já não temos a carrinha
branca onde voltaste ao
que conhecias para conhecer
de novo onde ouvimos música
de piqueniques e risos de netas
mãe queremos ainda passear
e já não temos quem nos leve
esperamos uma madrugada
que nos apresse a entrar na
camioneta azul na carrinha branca
um conforto que chegue e nos leve
um conforto que não chega
que não chega nunca mãe
In “A Criança em Ruínas”
Quasi Edições
José Luís Peixoto
N. 1974
DOIS AMANTES, O MUNDO
dois amantes, o mundo
cada um no seu reino, beijam-se nas praias
quando as ondas batem as areias
o mar é o meu navio,
hoje naufrago feliz
sabes quem sou, as dunas
que se levantam com o vento são
os sonhos do amor que dormita
em sossego nas praias
a terra és tu o mar sou eu
In "A Palavra no Cimo das Águas"
Editora Campo das Letras
Jorge Reis-Sá
N. 1977
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