Terça-feira, 31 de Dezembro de 2013

Recordando... Jorge de Sousa Braga

RAÍZES

 

Quem me dera ter raízes

que me prendessem ao chão.

Que não me deixassem dar

um passo que fosse em vão.

 

Que me deixassem crescer

silencioso e erecto,

como um pinheiro de riga,

uma faia ou um abeto.

 

Quem me dera ter raízes,

raízes em vez de pés.

Como o lódão, o aloendro,

o ácer e o aloés.

 

Sentir a copa vergar,

quando passasse um tufão.

E ficar bem agarrado,

pelas raízes, ao chão.

 

In “Herbário”

Editora Assírio & Alvim – 1999

 

Jorge de Sousa Braga

N. 1957

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Quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013

Recordando... David Mourão-Ferreira

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que só uma voz me evoque a sós consigo

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que não viva já ninguém meu conhecido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem vivo esteja um verso deste livro

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que terei de novo o Nada a sós comigo

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que nem o Natal terá qualquer sentido

 

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que o Nada retome a cor do Infinito

 

In "Cancioneiro de Natal”

Verbo Editora

 

David Mourão-Ferreira

1927 – 1996

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Quinta-feira, 19 de Dezembro de 2013

Recordando... Al Berto

OS AMIGOS

 

no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema

os transmudou em remota e resignada ausência

(Sete Poemas do Regresso de Lázaro)

In “O medo”
Contexto, Editora

 

Al Berto  **

1948 – 1997

 

** Pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares

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Sexta-feira, 13 de Dezembro de 2013

Recordando... Luís Veiga Leitão

CARTA

 

Lanço as palavras ao papel

como pescador calmo

lança os barcos ao rio.

Só no fundo, no fundo inviolado,

contraio e espalmo

as minhas mãos, mãos de afogado

morrendo à sede.

 

- Meu amor estou bem -

 

Quando te escrevo,

ponho os olhos no teu retrato

pendurado nos ferros da minha cama

 

para que as palavras tenham o sabor exacto

de quem me ouve,

de quem me fala,

de quem me chama.

 

«Meu amor estou bem»

 

Ontem vi a Primavera

numa flor cortada dos jardins.

Hoje, tenho nos ombros uma pedra

e um punhal nos rins.

 

«Meu amor estou bem»

 

Se a morte vier, querida amiga,

à minha beira, sem ninguém,

hei-de pedir-lhe que te diga:

 

«Meu amor estou bem»

 

In “Longo Caminho Breve”

Imprensa Nacional-Casa da Moeda – 1985

 

Luís Veiga Leitão **

1912 – 1987

 

** Pseudónimo de Luís Maria Leitão

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Sábado, 7 de Dezembro de 2013

Recordando... Manuel António Pina

OS GATOS

 

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

 

In “Como se desenha uma casa”

Editora Assírio & Alvim

 

Manuel António Pina

1943 – 2012

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Domingo, 1 de Dezembro de 2013

Recordando... António Ramos Rosa

AS PALAVRAS

 

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo

É um corpo que se tornou palavra

Segue-se a narrativa das transições:

as palavras identificam-se com o asfalto negro

o tropel das nuvens

a espessura azul das árvores acesas pelos faróis

o rumor verde

 

As palavras saem de uma ferida exangue

de teclas de metal fresco

de caminhos e sombras

da vertigem de ser só um deserto

de armas de gume branco

 

Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos

e há palavras como giestas vivas

 

Matrizes primordiais matéria habitada

forma indizível num rectângulo de argila

quem alimenta este silêncio senão o gosto de

colocar pedra sobre pedra até à oblíqua exactidão?

 

As palavras vêm de lugares fragmentários

de uma disseminação de iniciais

de magmas respirados

de odor de gérmen de olhos

 

As palavras podem formar uma escrita nativa

de corpos claros

 

Que são as palavras? Imprecisas armas

em praias concêntricas

torres de sílex e de cal

aves insólitas

 

As palavras são travessias brancas faces

giratórias

elas permitem a ascensão das formas

elevam-se estrato após estrato

ou voam em diagonal

até à cúpula diáfana

 

As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado

 

Que enfrentam as palavras? O espelho

da noite a sua impossível

elipse

saem da noite despedaçadas feridas

e são a minúscula luz das frestas

entre as pedras piramidais

 

In “Gravitações”

Coleção – De Viva Voz

Litexa Portugal – 1983

 

António Ramos Rosa

1924 – 2013

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