DEFESA
ah esta velha mania
de prolongar na noite o parco dia
e rebuscar na solidão maior
remédio
para o tédio
e para a dor
ah esta velha doença
de alinhar sinónimos de fel
ao longo do papel
e de gravar sinais de desvario
de loucura e de frio
nesta segunda pele
com a crença
de que a estrutura em verso
defendendo o meu íntimo vazio
suportará o peso do universo
In “Desesperânsia”
Corpos Editora
Anthero Monteiro
N. 1946
À FLOR DA PELE
Nunca vi nervos à flor da pele, mas sinto
a doçura do pólen e deixo a língua escorregar
pelo teu corpo. Dizem que os nervos se reflectem
nos intestinos. A flor dos intestinos cura-se
com a flor do iogurte. É um universo completo:
da flora à fauna intestinal, de dobra em dobra,
a vista da montanha, a festa dos vales
e pequenos seres despertando
no côncavo, no invisível cheio de promessas.
Deve ser terrível ter os nervos à flor da pele,
acalmá-los com massagens suaves até murcharem
ou então deixar os nervos à superfície
como um ouriço-cacheiro, um ouriço-do-mar
se viver no litoral. É um mundo perigoso.
São horas: Levo a minha pele à rua
presa pela correia do relógio.
In “Da Alma e dos Espíritos Animais”
Campo das Letras – 2001
Rosa Alice Branco
N. 1950
ENQUANTO O FILHO DORME
De noite acordo e quero ver-te. Dormes
tão quentinho no leito aconchegado
Lá fora, o inverno, túmido, pesado
de ventaneiras, temporais enormes.
O relógio dá horas, meias horas,
e eu não me canso de fitar teu rosto,
sereno, róseo...Nem pelo agosto
há tanta claridade nas auroras!
Neva lá fora. Como é quente aqui!
Aqueço as minhas mãos à tua beira,
tal como ao lume bom duma lareira.
E arde o lume que provém de ti!
Que viva a chama! Que calor tão bom!
Que bem aquenta um pobre coração!
In “Sangue”
Edições "Ser"
Saul Dias **
1902 – 1983
**pseudónimo de Júlio Maria dos Reis Pereira
MÚSICAS
Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.
Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.
Bartók em relação ao resto.
A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.
Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.
In “Minha Senhora De Quê “
Editora Quetzal – 1999
Ana Luísa Amaral
N. 1956
RENOVANDO O MUNDO...
Braços de luz, lábios de fogo
e mãos de acarinhar!
Vem, vem de mansinho,
asas abertas de Sol e Lua,
é tão suave o teu voar!
Aqui encontras o ninho
do Paraíso perdido,
não tens mais que procurar...
Chegou o fim da viagem,
agora, sim, vamos viajar
para o encontro das almas
perdidas no espaço e no tempo!
Este é um cais de passagem
para inflar as nossas velas
do vento mais promissor
que nos leva ao Shangri-la...
Está à nossa espera,
das sementes que vamos semear
e germinarão esperanças
dum universo melhor
onde o caos é nosso aliado
pra começar tudo de novo
e construir a cidade nova e sem medo!
E ao olhar para baixo,
do alto de nossas asas astrais,
sentiremos redobrado amor
por nós e pelo mundo
que ajudámos a voar!
In "Os Confrades da Poesia"
Ano V – Boletim Especial Nº 50 – Julho/Agosto.2012
Joaquim Evónio
1938 – 2012
POBRE TÍSICA
Quando ela passa à minha porta,
Magra, lívida, quase morta,
E vai até à beira-mar,
Lábios brancos, olhos pisados:
Meu coração dobra a finados,
Meu coração põe-se a chorar.
Perpassa leve como a folha,
E, suspirando, às vezes, olha
Para as gaivotas, para o ar:
E, assim, as suas pupilas negras
Parecem duas toutinegras,
Tentando as asas para voar!
Veste um hábito cor de leite,
Sainha lisa, sem enfeite,
Boina maruja, toda luar:
Por isso, mal na praia alveja,
As mais suspiram com inveja:
«Noiva feliz, que vais casar...»
Triste, acompanha-a um terra-nova
Que, dentro em pouco, à fria cova
A irá de vez acompanhar...
O chão desnuda com cautela,
Que Boy conhece o estado dela:
Quando ela tosse, põe-se a uivar!
E, assim, sozinha com a aia,
Ao sol, se assenta sobre a praia,
Entre os bebés, que é o seu lugar.
E o Oceano, trémulo avozinho,
Cofiando as barbas cor de linho,
Vai ter com ela a conversar.
Falam de sonhos, de anjos, e ele
Fala de amor, fala daquele
Que tanto e tanto a faz penar...
E o coração parte-se todo,
Quando a sorrir, com tão bom modo,
O mar lhe diz: «Há-de sarar...»
Sarar? Misérrima esperança!
Padres! ungi essa criança,
Podeis sua alma encomendar:
Corpinho de anjo, casto e inerme,
Vai ser amada pelo verme,
Os bichos vão-na desfrutar.
Sarar? Da cor dos alvos linhos,
Parecem fusos seus dedinhos,
Seu corpo é roca de fiar...
E, ao ouvir-lhe a tosse seca e fina,
Eu julgo ouvir numa oficina
Tábuas do seu caixão pregar!
Sarar? Magrita como o junco,
O seu nariz (que é grego e adunco)
Começa aos poucos de afilar,
Seus olhos lançam ígneas chamas:
Ó pobre mãe, que tanto a amas,
Cautela! O Outono está a chegar...
Leça, 1889
Elrgias
In ” Só” – Fev.1989
Estante Editora
António Nobre
1867 – 1900
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