AGORA QUE AS PALAVRAS SECARAM
Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.
No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.
Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.
In “Marcas de Água”
INCM – Imprensa Nacional
Eduardo Pitta
N. 1949
SABERÁS
Saberás que penso em ti
porque escrevo um poema
mais forte que o poeta,
um poema que traz o teu nome
escrito a medo
em segredo
com a intensidade de uma quilha
abrindo as asas do sonho.
Saberás que me traí traindo
a promessa de te fingir morto
e que te quis querendo
a lua outra vez a lua e o corpo.
In “Luminária”
Editora Alma Azul
Ana Rita Calmeiro
N. 1977
A PEDRA
Rugosa dureza que respiro
cerrado silêncio
rastro das nuvens que partiram
quartzo das montanhas da Nave
xisto azul dos montes Dúrios
- Pedras machos me pariram
Partido e repartido sob linhas férreas
no forro a côdea do sol e o salário
dos passos ingénuos, degraus de vinhas
e suor e sonho de maltas que saibraram
as entranhas do fogo e as vísceras do mar.
- Pedras fêmeas me criaram
Minha cidade de funduras compacta
granitos «dente de cavalo» entre os quais
corre uma língua de espelhos marginais
granitos que sobem no ímpeto das torres
e olham, olhos facetados, o sonoro
poente das clarabóias, íris ardendo
- Pedras da minha pedra onde morro e moro.
(Rosto Por Dentro)
In “Biografia Pétrea”
Thesaurus Editora
Luís Veiga Leitão **
1912 – 1987
** Pseudónimo de Luís Maria Leitão
MÃE QUE LEVEI À TERRA
Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
que farei destas tuas artérias?
Que medula, placenta,
que lágrimas unem aos teus
estes ossos? Em que difere
a minha da tua carne?
Mãe que levei à terra
como me acompanhaste à escola,
o que herdei de ti
além de móveis, pó, detritos
da tua e outras casas extintas?
Porque guardavas
o sopro de teus avós?
Mãe que levei à terra
como me trouxeste no ventre,
vejo os teus retratos,
seguro nos teus dezanove anos,
eu não existia, meu Pai já te amava.
Que fizeste do teu sangue,
como foi possível, onde estás?
In “A Ignorância da Morte”
Editorial Presença
António Osório
N. 1933
CIRCO
Poeta não é gente, é bicho coiso
Que da jaula ou gaiola vadiou
E anda pelo mundo às cambalhotas,
Recordadas do circo que inventou.
Estende no chão a capa que o destapa,
Faz do peito tambor, e rufa, salta,
É urso bailarino, mono sábio,
Ave torta de bico e pernalta.
Ao fim toca a charanga do poema,
Caixa, fagote, notas arranhadas,
E porque bicho é, bicho lá fica,
A cantar às estrelas apagadas.
In “Os Poemas Possíveis”
Editorial Caminho
José Saramago
1922 – 2010
UM DIA JUNTEI TODAS AS PALAVRAS
Um dia juntei todas as palavras
que já aprendera e
busquei para elas novos sentidos,
novas maneiras de soar e de voar
até ao coração dos homens.
Censuraram-me por tê-lo feito
e houve até quem dissesse:
“As palavras são o que são
e procurar para elas novos significados
é pura perda de tempo e ofensa dos deuses.”
Eu não lhes dei ouvidos
e continuei a escrever, aprendendo
O sabor de casar a palavra ”água”
com a palavra ”vento” e a palavra
“corpo” com a palavra “terra”
e a palavra “homem” com “sonho”
e a palavra “natureza” com “vida”.
Foi, assim um pouco sem o querer,
um pouco sem o esperar, que usei
pela primeira vez a palavra”poesia”,
que viaja comigo, companheira eterna,
para todos os lugares onde vou,
desde a memória do homem
até aos últimos esconderijos da noite,
até ao fundo da claridade dos dias(…)
In “No Voo de uma palavra”
Editora Teorema
José Jorge Letria
N.1951
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