PELO INVERSO
Começar pelo fim,
arremeter pelo inverso,
iniciar de noite o dia,
penetrar-te o corpo pelo seu avesso,
desdobrar-te a pele,
correr os dedos por ti
em segundos de inanição
parda
a fazer de conta que não sinto,
não estou cá,
não sou eu,
este é apenas o inverso de mim,
a minha sombra
colorida apenas
da fraca luz que acho
no teu regaço.
É neste rigor
de espelhos
que me revejo.
Um inverso de alma,
uma espécie
de mim
ao contrário.
In “Geografias Dispersas”
Editora Edita-Me
Alexandra Malheiro
N. 1972
REALIDADE
Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolam-se na sombra
da vida a dor do sentimento.
Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.
In “Erosão de Sentimentos”
Editorial Caminho
Isabel de Sá
N. 1951
METAMORFOSE
Mulher de corpo de lezíria
de pálpebras iluminadas
minha caixa de vitrais
cheia de fogos-fátuos
minha fonte de pedrarias
meus cisne
Mulher no inferno cercada de antílopes fumegantes
estátua de ferro em brasa
até ao joelho na lava
Mulher minha loucura bordada a tinta de escrever
meu túnel de humidade minha cratera de cio
nome de roseira
nome de carpa
nome de canoa oceânica minha constelação
minha estrela sombria cor de cereja
caída do outono para a boca minha
Mulher
meu riso de água potável minha cascata de leite
minha gaivota de camisola branca minha febre
meu violino com as pupilas em chamas
Mulher à chuva envolta num lençol de vinho
apanhando um a um
os cães de patas trémulas e latidos de ave
os cães torrões de açúcar de língua de rubi
os cães de olhos de bondade
no alcatrão junto dos pés de trigo de Gina
minha colher de pétalas na chávena de búzio
meu substantivo meu advérbio de café
numa plantação de tabaco
meu pântano de arroz transparente
minha vela de estai no Cabo Horn
minha Mulher de tentáculos minha tainha
minha savana meu plágio de Vénus
na boca um do outro é que morremos
meu Amor
minha porta de neve com fechaduras quentes
minha cabra de safira
minha Mãe
Impressões Digitais – Edição do autor
In “O Surrealismo na Poesia Portuguesa”
Org., pref. e notas de Natália Correia
Publicações Europa-América, 1973
António Barahona da Fonseca
N. 1939
ERA APENAS UM RETRATO...
Era apenas um retrato
que um fotógrafo de ocasião nos tirou
e tinha a história de não ter
história nenhuma
(já li uma frase assim no Alberto Caeiro
desculpa)
lembro-me: nem sequer olhávamos um para o outro
embora o fotógrafo se tivesse esforçado muito
em nos mostrar felizes
mas ele não podia adivinhar que a hora da partida
se desenhava no fumo dos cafés que bebíamos
ao som triste da Anne van der Lowe no jukebox
das gares onde adiávamos diariamente
os funestos rumores do esquecimento
talvez tivéssemos estremecido um pouco
e por isso os nossos rostos ficaram
levemente desfocados
como se naquele momento tivéssemos encontrado
a mais eficaz palavra
de despedida
In “Dois Corpos Tombando Na Água”
Editorial Caminho
Alice Vieira
N. 1943
SE EU MORRER DE MANHÃ
"Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.
Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.
Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.
Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.
Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.
Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei."
In "Poemas Escolhidos e Dispersos"
Roma Editora – Lisboa 1997
Rosa Lobato de Faria
1932 – 2010
SONETO DO TRABALHO
Das prensas dos martelos das bigornas
das foices dos arados das charruas
das alfaias dos cascos e das dornas
é que nasce a canção que anda nas ruas.
Um povo não é livre em águas mornas
não se abre a liberdade com gazuas
à força do teu braço é que transformas
as fábricas e as terras que são tuas.
Abre os olhos e vê. Sê vigilante
a reacção não passará diante
do teu punho fechado contra o medo.
Levanta-te meu Povo. Não é tarde.
Agora é que o mar canta é que o sol arde
pois quando o povo acorda é sempre cedo.
"Vinte Anos de Poesia"
In “Obra Poética”
Edições Avante
José Carlos Ary dos Santos
1937 – 1984
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