POVO
Povo que lavas no rio
Que vais às feiras e à tenda
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Há-de haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida não!
Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!
Fui ter à mesa redonda,
Beber em malga que esconda
Um beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida não!
Procissões de praia e monte,
Areais, píncaros, passos
Atrás dos quais os meus vão!
Que é dos cântaros da fonte?
Guardo o jeito desses braços...
Mas a tua vida, não!
Aromas de urze e de lama!
Dormi com eles na cama...
Tive a mesma condição.
Bruxas e lobas, estrelas!
Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!
Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas
Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...
Vi certa curva em teu seios...
Mas a tua vida, não!
Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão...
Povo! Povo! eu te pertenço.
Deste-me alturas de incenso.
Mas a tua vida, não!
In “Miserere” – 1948
Editora Portugália
Pedro Homem de Mello
1904 – 1984
FONTE II
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
“A Colher na Boca” – 1961
Editora Ática
In “Ler Por Gosto”
Areal Editores
Herberto Hélder
N. 1930
ALIMENTO IMPERFEITO
Possa eu tornar-me pedra,
da pedra areia, da rocha
grão, do diamante brilho.
Endureça eu como concha
de água matricial, minério
de cobre, coração cristalino.
Seja eu alimento imperfeito
de clareza perfeita, mar denso,
condensado, astral e puro.
Seja eu mel coagulado
d’orvalho e ouro vivo.
In “Adornos”
Editorial Dom Quixote
Ana Marques Gastão
N. 1962
ECLOGA OU
CANÇÄO ABANDONADA
Na folha bailada
Levada
No vento,
Vai meu pensamento…
Na cinza delida
Espargida
Pelo rio,
Vai meu olhar frio…
E no teu sorriso
Da mais lisa
Quietação...
O meu coração…
In “As Folhas de Poesia Távola Redonda"
Fundação Calouste Gulbenkian
Boletim Cultural – Série VI – n.º 11 – Outubro de 1988
Cristovam Pavia **
1933 – 1968
** Pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores
POEMA III
Como tu embriagas!
Vens, ó Poesia!, ou tumultuosa ou mansa,
Cerras o nosso olhar a estes tempos em chagas,
E canta dentro em nós uma esperança.
És uma irmã que deixa
A fresca mão na nossa testa ardente,
Depois da luta que engrandece a queixa
Que temos sempre contra tanta gente.
És aquela que chega
— Se o tédio em nossas almas se insinua —
Sempre fácil e pronta para a entrega
Mais total e mais nua.
És tu, poesia, quem
— Quando nos prendem boca, mãos e pés —
A coragem raivosa nos mantém,
Ciciando-nos: “Talvez...”
Que bem hajas! Aqui
E em toda a parte, nossos passos guia!
Por cada hora, sejamos mais de ti,
E tu, mais nossa, Poesia!
In “Pregão”1952
Edições Saber
Alberto Serpa
1906 – 1992
ENCENAÇÕES E QUASE VOOS
Uma luz construída
ilumina
esses santos,
cada um sem o halo,
mas pombo circundante
na cabeça
São quatro santos no cimo
da igreja,
e cada um dos pombos escolheu
a face mais marcada,
os caracóis de pedra
que fossem mais macios
Talvez não sejam santos,
mas apóstolos, tão de barroco,
e o seu gosto a vestir:
um excesso de desvio
quase pecado
Apóstolos ou santos,
os pombos circundantes na cabeça
são halos delicados
que, julgando-se em céu,
vêem quase metade da cidade,
a meio: o rio e os telhados
de casas
Fingindo-se de mão a abençoar,
são adereço de um teatro
inteiro:
caos encenado
ou um perfil egípcio
E os caracóis solenes e sombrios
convidam ao pecado
e convocam-me aqui: noite de verão,
a liquidez do olhar:
Eu não poder,
em pedra,
abrir as asas
In “Se Fosse Um Intervalo”
Edições Dom Quixote
Ana Luísa Amaral
N. 1956
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Ricardo Rei...
. Recordando... Victor Oliv...
. Recordando... José Terra ...
. Recordando... Ana Luísa A...
. Recordando... Miguel Alme...
. Recordando... Lília da Fo...
. Recordando... Alexandre O...
. Recordando... Camilo Pess...