Quarta-feira, 29 de Fevereiro de 2012

Recordando... António Gedeão

POEMA DA AUTO-ESTRADA

  

Voando vai para a praia

Leonor na estrada preta.

Vai na brasa, de lambreta.

 

Leva calções de pirata,

vermelho de alizarina,

modelando a coxa fina

de impaciente nervura.

Como guache lustroso,

amarelo de indantreno,

blusinha de terileno

desfraldada na cintura.

  

Fuge, fuge, Leonoreta.

Vai na brasa, de lambreta.

 

Agarrada ao companheiro

na volúpia da escapada

pincha no banco traseiro

em cada volta da estrada.

Grita de medo fingido,

que o receio não é com ela,

mas por amor e cautela

abraça-o pela cintura.

Vai ditosa, e bem segura.

  

Como um rasgão na paisagem

corta a lambreta afiada,

engole as bermas da estrada

e a rumorosa folhagem.

Urrando, estremece a terra,

bramir de rinoceronte,

enfia pelo horizonte

como um punhal que se enterra.

Tudo foge à sua volta,

o céu, as nuvens, as casas,

e com os bramidos que solta

lembra um demónio com asas.

 

Na confusão dos sentidos

já nem percebe, Leonor,

se o que lhe chega aos ouvidos

são ecos de amor perdidos

se os rugidos do motor.

 

Fuge, fuge, Leonoreta.

Vai na brasa, de lambreta.

 

 

In “Máquina de Fogo” (1961)

Tip. Atlântida Ed. – Coimbra

 

António Gedeão  **

1906 – 1997

 

 

** Pseudónimo de Rómulo de Carvalho

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Sábado, 25 de Fevereiro de 2012

Recordando... Alexandre O’Neill

SONETOS GARANTIDOS

 

Sonetos garantidos por dois anos.

E é muito já, leitor que mos compraste

para encontrar a alma, que trocaste

por rádios, frigoríficos, enganos…

 

Essa tristeza sobre pernas faz-te

temeroso e cruel e tonto e traste.

Nem pior nem melhor que outros fulanos,

não vês a Bomba e crês nos marcianos…

 

E é para ti que escrevo, é para ti

que  um verso lanço – ó mão – como o destino,

nel’ ponho mesura, desatino,

 

rasgo, invenção, lugar-comum, protesto?

Antes para soldado ou para resto,

escroto de velho, ronco de suíno…

 

 

In “Abandono Vigiado”

Guimarães Editores

 

Alexandre O’Neill

1924 – 1986 

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Domingo, 19 de Fevereiro de 2012

Recordando... Júlio Diniz

TRIGUEIRA

 

Trigueira! Que tem? Mais feia

Com essa cor te imaginas?

Feia! Tu, que assim fascinas

Com um só olhar dos teus!

Que ciúmes tens da alvura

D’esses semblantes de neve!

Ai, pobre cabeça leva!

Que te não castigue Deus.

 

Trigueira! Se tu soubesses

O que é ser assim trigueira!

D’essa ardilosa maneira

Por que tu o sabes ser;

Não virias lamentar-te,

Toda sentida e chorosa,

Tendo inveja à cor da rosa,

Sem motivos para a ter.

 

Trigueira! Porque és trigueira

É que eu assim te quis tanto,

Daí provem todo o encanto

Em que me traz este amor.

E suspiras e murmuras!

Que mais desejavas inda?

Pois serias tu mais linda,

Se tivesses outra cor?

 

Trigueira! Onde mais realça

O brilhar duns olhos pretos,

Sempre húmidos, sempre inquietos,

Do que numa cor assim?

Onde o correr duma lágrima

Mais encantos apresenta?

E um sorriso, um só, nos tenta,

Como me tentou a mim?

 

Trigueira! E choras por isso!

Choras, quando outras te invejam

Essa cor, e em vão forcejam

Por, como tu, fascinar?

Ó louca, nunca mais digas,

Nunca mais, que és desditosa,

Invejar a cor da rosa,

Em ti, é quase pecar.

 

Trigueira! Vamos, esconde-me

Esse choro de criança.

Ai, que falta de confiança!

Que graciosa timidez!

Enxuga os bonitos olhos,

Então, não chores, trigueira,

E nunca dessa maneira

Te lamentes outra vez.

 

 

In “As Cem Melhores Poesias

Líricas da Língua Portuguesa”

 

Júlio Diniz **

1839 – 1871

 

 

** Pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho

 

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Segunda-feira, 13 de Fevereiro de 2012

Recordando... António Ramos Rosa

NÃO POSSO ADIAR O AMOR

 

Não posso adiar o amor

para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque

na garganta
ainda que o ódio estale

e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese

séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore,
não posso adiar para

outro século a minha

vida
nem o meu amor
nem o meu grito de

libertação
Não posso adiar o coração

 

 

In “Viagem Através de Uma Nebulosa”

“Signos” – Lisboa Editora

 

António Ramos Rosa

N. 1924

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Terça-feira, 7 de Fevereiro de 2012

Recordando... Almeida Garrett

NÃO TE AMO

 

Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
         E eu n´alma – tenho calma,
         A calma do jazigo.
         Ai!, não te amo, não.

 

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
         E a vida – nem sentida
         A trago eu já comigo.
         Ai!, não te amo, não!

 

Ai! não te amo, não; e só te quero
         De um querer bruto e fero
         Que o sangue me devora,
         Não chega ao coração.

 

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
         Quem ama a aziaga estrela
         Que lhe luz na má hora
         Da sua perdição?

 

E quero-te, e não te amo, que é forçado.
         De mau feitiço azado
         Este indigno furor.
         Mas oh! Não te amo, não.

 

E infame sou, porque te quero; e tanto
         Que de mim tenho espanto,
         De ti medo e terror…
         Mas amar!… não te amo, não.

 

 

 In “Folhas Caídas”

 

Almeida Garrett

1799 - 1854                                       

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Domingo, 5 de Fevereiro de 2012

Recordando... Miguel Torga

MÃE

 

Mãe:

Que desgraça na vida aconteceu,

Que ficaste insensível e gelada?

Que todo o teu perfil se endureceu

Numa linha severa e desenhada?

 

Como as estátuas, que são gente nossa

Cansada de palavras e ternura,

Assim tu me pareces no teu leito.

Presença cinzelada em pedra dura,

Que não tem coração dentro do peito.

 

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.

Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.

Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes

Por detrás do terror deste vazio.

 

Mãe:

Abre os olhos ao menos, diz que sim!

Diz que me vês ainda, que me queres.

Que és a eterna mulher entre as mulheres.

Que nem a morte te afastou de mim!

 

In “Diário IV”

Editora Coimbra

 

Miguel Torga *

1907 – 1995

 

 

* Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha

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Quarta-feira, 1 de Fevereiro de 2012

Recordando... Augusto Casimiro

PRIMAVERA DE DEUS

 

Primeira vez que os olhos meus rezaram,

Abranjendo o orizonte, o céu, o espaço,

E em meu olhar estático passaram

As coisas, num fraterno, unjido abraço;

 

Primeiro verso traduzindo a minha

Ânsia indomável de Beleza e cõr,

E primeira emoção, a que adivinha,

Em tudo quanto existe, igual Amor;

 

Primeira eterna ora admirável

Em que eu senti meu coração vibrando

Com as coisas, num ritmo inefável,

– Névoa, pedra a sonhar, fonte chorando…

 

Primeira vez que os braços meus cingiram

Um tronco viridente, ou a emoção

De que meus olhos tristes se cobriram,

Como abraçasse o próprio coração;

 

E a vez primeira em que na minha fronte,

Na minha lama simples, repoisou,

– Como oração de névoa sobre um monte, –

A consciência clara do que sou;

 

Primeiro dia iniciado puro,

– Todas as almas téem alvoradas –

Em que senti as coisas, de mãos dadas,

Caminharem comigo para o Futuro;

 

Primeira vez em que um sentir profundo,

Num delírio sagrado, adivinhou

Um invisível, transcendente mundo,

– E o silêncio e os mistérios escutou;

 

… Alma-fraterna que me disse tudo

E me ensinou a olhar e a perceber

A emoção deslumbrada, o sentir mudo,

De rocha ou tronco, ou de alvorada ou sêr;

 

Primeira vez em que caí de giolhos,

– Postas as mãos, a luz do sol no olhar –

Bebendo a luz divina pelos olhos,

Sentindo a sêde espiritual de amar;

 

Primeira vez em que chorei de encanto,

Primeira elevação religiosa

Da minha alma, enternecida, ansiosa,

A persentir em mim o heroi, o santo;

 

Quando, vivendo em mim profunda a vida,

Em minh’alma, vestida de esplendor,

Senti a própria alma renascida,

A aleluia, a anunciação do Amor;

 

Primeira vez em que na minha Arte,

Nos meus versos, – mãezinha –, te senti,

– Foi um passo que dei a procurar-te,

– Primeiro passo na ascenção p’ra ti!

 

… Como alguém que subisse a grande altura

E aos poucos fôsse p’ra tocar os céus…

– Que as almas sobem pela formosura,

– Ao Monsalvato onde floresce Deus.

 

– Deslumbramentos , emoção, bondade,

Foram degraus nesta ascenção de Amor,

– E as lágrimas – que toda a claridade,

– Toda a Vitória é ganha pela Dôr…

 

Há quanto tempo estava à tua espera?

Que saudosa emoção de uma outra vida,

Me ensinava a esperar a Primavera,

Sentindo a Primavera em mim florida?

 

Sabes, – mãezinha? – como a flor existe

Na semente que sonha, a germinar,

E a alegria maior num olhar triste,

– Porque ser triste é um modo de chorar;

 

Como o som no cristal, ansiosamente,

Espera que o libertem, e o granito

Sonha a libertação em luz ardente,

Na instantánea visão dum infinito;

 

– Assim, mãezinha, – a tua formosura

Desde o Princípio vive em minha vida,

E em ti floresce a minha vida pura,

Em perfeição e harmonia unjida…

 

Assim já noutras vidas pressentimos

Esta Vida-Maior que oje vivemos.

Já neste Amor outras paisagens vimos,

E outras dores puríssimas sofremos…

 

Já nos beijámos em crepúsc’los de oiro,

Nos confundimos num etéreo abraço!

– Fomos jóias, – Amor –, de igual tesoiro,

– Fomos luz e visão no mesmo espaço,

 

Fomos seiva num tronco aureolado

Em luz d névoa, em bênção de arrebol,

E o nosso Amor andou transfigurado,

Em beijos de oiro, em luz fecunda, em sol!

 

Tudo palpita em nós, tudo rodeia

O nosso Amor, – tudo êste Amor nos diz!

– E se quero cinjir a própria ideia,

– Nem eu compreendo como sou feliz!

 

 

Coimbra, Janeiro de 1910

 

In Revista “A Águia”

N.º 2 – 1.ª Série – Ano I – de 15 de Dezembro de 1910

 

Augusto Casimiro

1889 – 1967

 

 

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