POEMA DA AUTO-ESTRADA
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.
Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.
Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.
Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
In “Máquina de Fogo” (1961)
Tip. Atlântida Ed. – Coimbra
António Gedeão **
1906 – 1997
** Pseudónimo de Rómulo de Carvalho
SONETOS GARANTIDOS
Sonetos garantidos por dois anos.
E é muito já, leitor que mos compraste
para encontrar a alma, que trocaste
por rádios, frigoríficos, enganos…
Essa tristeza sobre pernas faz-te
temeroso e cruel e tonto e traste.
Nem pior nem melhor que outros fulanos,
não vês a Bomba e crês nos marcianos…
E é para ti que escrevo, é para ti
que um verso lanço – ó mão – como o destino,
nel’ ponho mesura, desatino,
rasgo, invenção, lugar-comum, protesto?
Antes para soldado ou para resto,
escroto de velho, ronco de suíno…
In “Abandono Vigiado”
Guimarães Editores
Alexandre O’Neill
1924 – 1986
TRIGUEIRA
Trigueira! Que tem? Mais feia
Com essa cor te imaginas?
Feia! Tu, que assim fascinas
Com um só olhar dos teus!
Que ciúmes tens da alvura
D’esses semblantes de neve!
Ai, pobre cabeça leva!
Que te não castigue Deus.
Trigueira! Se tu soubesses
O que é ser assim trigueira!
D’essa ardilosa maneira
Por que tu o sabes ser;
Não virias lamentar-te,
Toda sentida e chorosa,
Tendo inveja à cor da rosa,
Sem motivos para a ter.
Trigueira! Porque és trigueira
É que eu assim te quis tanto,
Daí provem todo o encanto
Em que me traz este amor.
E suspiras e murmuras!
Que mais desejavas inda?
Pois serias tu mais linda,
Se tivesses outra cor?
Trigueira! Onde mais realça
O brilhar duns olhos pretos,
Sempre húmidos, sempre inquietos,
Do que numa cor assim?
Onde o correr duma lágrima
Mais encantos apresenta?
E um sorriso, um só, nos tenta,
Como me tentou a mim?
Trigueira! E choras por isso!
Choras, quando outras te invejam
Essa cor, e em vão forcejam
Por, como tu, fascinar?
Ó louca, nunca mais digas,
Nunca mais, que és desditosa,
Invejar a cor da rosa,
Em ti, é quase pecar.
Trigueira! Vamos, esconde-me
Esse choro de criança.
Ai, que falta de confiança!
Que graciosa timidez!
Enxuga os bonitos olhos,
Então, não chores, trigueira,
E nunca dessa maneira
Te lamentes outra vez.
In “As Cem Melhores Poesias
Líricas da Língua Portuguesa”
Júlio Diniz **
1839 – 1871
** Pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho
NÃO POSSO ADIAR O AMOR
Não posso adiar o amor
para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque
na garganta
ainda que o ódio estale
e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese
séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore,
não posso adiar para
outro século a minha
vida
nem o meu amor
nem o meu grito de
libertação
Não posso adiar o coração
In “Viagem Através de Uma Nebulosa”
“Signos” – Lisboa Editora
António Ramos Rosa
N. 1924
NÃO TE AMO
Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma.
E eu n´alma – tenho calma,
A calma do jazigo.
Ai!, não te amo, não.
Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai!, não te amo, não!
Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.
Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?
E quero-te, e não te amo, que é forçado.
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! Não te amo, não.
E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror…
Mas amar!… não te amo, não.
In “Folhas Caídas”
Almeida Garrett
1799 - 1854
MÃE
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
In “Diário IV”
Editora Coimbra
Miguel Torga *
1907 – 1995
* Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha
PRIMAVERA DE DEUS
Primeira vez que os olhos meus rezaram,
Abranjendo o orizonte, o céu, o espaço,
E em meu olhar estático passaram
As coisas, num fraterno, unjido abraço;
Primeiro verso traduzindo a minha
Ânsia indomável de Beleza e cõr,
E primeira emoção, a que adivinha,
Em tudo quanto existe, igual Amor;
Primeira eterna ora admirável
Em que eu senti meu coração vibrando
Com as coisas, num ritmo inefável,
– Névoa, pedra a sonhar, fonte chorando…
Primeira vez que os braços meus cingiram
Um tronco viridente, ou a emoção
De que meus olhos tristes se cobriram,
Como abraçasse o próprio coração;
E a vez primeira em que na minha fronte,
Na minha lama simples, repoisou,
– Como oração de névoa sobre um monte, –
A consciência clara do que sou;
Primeiro dia iniciado puro,
– Todas as almas téem alvoradas –
Em que senti as coisas, de mãos dadas,
Caminharem comigo para o Futuro;
Primeira vez em que um sentir profundo,
Num delírio sagrado, adivinhou
Um invisível, transcendente mundo,
– E o silêncio e os mistérios escutou;
… Alma-fraterna que me disse tudo
E me ensinou a olhar e a perceber
A emoção deslumbrada, o sentir mudo,
De rocha ou tronco, ou de alvorada ou sêr;
Primeira vez em que caí de giolhos,
– Postas as mãos, a luz do sol no olhar –
Bebendo a luz divina pelos olhos,
Sentindo a sêde espiritual de amar;
Primeira vez em que chorei de encanto,
Primeira elevação religiosa
Da minha alma, enternecida, ansiosa,
A persentir em mim o heroi, o santo;
Quando, vivendo em mim profunda a vida,
Em minh’alma, vestida de esplendor,
Senti a própria alma renascida,
A aleluia, a anunciação do Amor;
Primeira vez em que na minha Arte,
Nos meus versos, – mãezinha –, te senti,
– Foi um passo que dei a procurar-te,
– Primeiro passo na ascenção p’ra ti!
… Como alguém que subisse a grande altura
E aos poucos fôsse p’ra tocar os céus…
– Que as almas sobem pela formosura,
– Ao Monsalvato onde floresce Deus.
– Deslumbramentos , emoção, bondade,
Foram degraus nesta ascenção de Amor,
– E as lágrimas – que toda a claridade,
– Toda a Vitória é ganha pela Dôr…
Há quanto tempo estava à tua espera?
Que saudosa emoção de uma outra vida,
Me ensinava a esperar a Primavera,
Sentindo a Primavera em mim florida?
Sabes, – mãezinha? – como a flor existe
Na semente que sonha, a germinar,
E a alegria maior num olhar triste,
– Porque ser triste é um modo de chorar;
Como o som no cristal, ansiosamente,
Espera que o libertem, e o granito
Sonha a libertação em luz ardente,
Na instantánea visão dum infinito;
– Assim, mãezinha, – a tua formosura
Desde o Princípio vive em minha vida,
E em ti floresce a minha vida pura,
Em perfeição e harmonia unjida…
Assim já noutras vidas pressentimos
Esta Vida-Maior que oje vivemos.
Já neste Amor outras paisagens vimos,
E outras dores puríssimas sofremos…
Já nos beijámos em crepúsc’los de oiro,
Nos confundimos num etéreo abraço!
– Fomos jóias, – Amor –, de igual tesoiro,
– Fomos luz e visão no mesmo espaço,
Fomos seiva num tronco aureolado
Em luz d névoa, em bênção de arrebol,
E o nosso Amor andou transfigurado,
Em beijos de oiro, em luz fecunda, em sol!
Tudo palpita em nós, tudo rodeia
O nosso Amor, – tudo êste Amor nos diz!
– E se quero cinjir a própria ideia,
– Nem eu compreendo como sou feliz!
Coimbra, Janeiro de 1910
In Revista “A Águia”
N.º 2 – 1.ª Série – Ano I – de 15 de Dezembro de 1910
Augusto Casimiro
1889 – 1967
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