VENS DE NOITE NO SONHO
Vens de noite no sonho
sem pés
entre páginas
de gasta paciência
quando a música findou
e teu sorriso se desfez
como um grão de pólen.
Vens no veneno oculto
de meus dias
no silêncio
dos meus ossos
devagar
arrastando em queda
o nosso mundo.
Vens no espectro
da angústia
na escrita
inquieta
destes versos
no luto maternal
que me devolve a ti.
A escuridão desce então
sobre o meu corpo
quando o rosto da morte
adormece na almofada.
In “Nocturnos”
Editora Gótica
Ana Marques Gastão
N. 1962
NATAL, E NÃO DEZEMBRO
Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama-se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.
In “Cancioneiro do Natal”
(Prémio Nacional de Poesia – 1971)
Edições Rolim – 1986
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
ROMANCE INGÉNUO DE DUAS LINHAS PARALELAS
Duas linhas paralelas,
muito paralelamente,
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.
Seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço,
que ninguém sabe onde é,
se podiam encontrar,
falar e tomar café.
Mas farta de andar sozinha,
uma delas certo dia
voltou-se para a outra linha,
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
«Deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim...»
Diz a outra: «Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar,
temos de ir devagarinho,
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!»
Não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada,
pela calada, sem um grito,
deita a mãozinha matreira,
puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente,
as duas a murmurar
olharam-se docemente,
e sem fazerem perguntas,
puseram-se a namorar,
seguiram as duas juntas.
Assim, nestas poucas linhas
fica uma estória banal
com linhas e entrelinhas
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente.
In “Eu Sou Português Aqui”
Edições Ulmeiro
José Fanha
N. 1951
MULHER
(EM DEFINIÇÃO)
Mulher-Poesia
que deixa no meu corpo bocados de poema
Mulher-Criança
que desce à minha infância
e me traz adulta
Mulher-Inteira
repartida no meu ser
Mulher-Absoluta
Fonte da minha origem
In “Amor no Feminino”
Editora Fora do Texto – 1997
Manuela Amaral
1934 – 1995
NOCTURNO
Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...
Como um canto longínquo – triste e lento –
Que voga e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...
A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.
E tu entendes o mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!
In “Sonetos”
Colecção – Autores Portugueses de Ontem
Estante Editora – Maio de 1989
Antero de Quental
1842 – 1891
ARMA SECRETA
Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.
Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.
A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.
Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.
In “Poesia Completa”
Portugália Editora
António Gedeão *
1906 – 1997
* Pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
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