A REGRA DO JOGO
Adivinham-se tempos difíceis:
a obsessão apoderou-se das tribos;
uma vírgula pode ser um crime,
a ameaça esconde-se numa frase incompleta.
Os jornais encheram-se de notícias peregrinas,
os editoriais ponderam. Murmura-se
nas fileiras, a especulação prospera.
Com um salário que é como mau tecido,
depois da primeira lavagem, o funcionário público
poupa na fruta, no tabaco, no queijo. Amanhã,
de comboio, a História enfrentará o seu destino,
ou, pelo menos, uma cópia que levará tempo
(medido em lustros) a rasurar.
In “Nada Tão Importante, Que Não Possa Ser Dito”
Assírio & Alvim – 2007
José Alberto de Oliveira
N. 1952
Ó ALMA PURA ENQUANTO CÁ VIVIAS
(À morte da esposa)
Ó alma pura enquanto cá vivias,
Alma, lá onde vives, já mais pura,
Porque me desprezaste? Quem tão dura
Te tornou ao amor, que me devias?
Isto era, o que mil vezes prometias,
Em que minh’alma estava tão segura,
Que ambos juntos da hora desta escura
Noute nos subiria aos claros dias?
Como em tão triste cárcere me deixaste?
Como pude eu sem mim deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?
Ah! que o caminho tu bem mo mostraste,
Porque correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te!
In “Poemas Lusitanos” – 1598
Mandado publicar por seu filho, Miguel Leite Ferreira
António Ferreira
1528 – 1569
UMA SOMBRA OUTRA SOMBRA A NOITE DESCE
Uma sombra outra sombra a noite desce
uma sombra a noite desce
sobre telhados que não vejo
entra nas casas onde a esperam sem saber
da solidão gomosa que as trespassa e me trespassa
a mim que não a espero e não desejo
e a sinto sem a ver descer entre altos ramos
ouvindo um fio de musgo e susto que em seguida
me faz olhar o céu
Céu de incerteza beleza mutilada
na mesma claridade que floresce um só instante mais
enquanto morre
Céu de sereno sono com clarões baços e abandono e medo
e a vagarosa trémula, neblina que escorre e se desprende
o só calor real e só possível do que é imenso e impossível
no ansioso terror de nunca mais
Iluminam-se as ruas
enquanto sobre nós e em nós a noite desce cresce
e nos envolve e nos liberta e prende
Mas aqui onde estamos
já não estamos
que sem cartão de identidade e de mãos nuas
desafiando a noite e a confusão tentacular dos ramos
onde julgam que estamos
sem princípio e sem fim anónimos voamos
(Memória Dum Pintor Desconhecido)
In “Poesia Incompleta”
Publicações Europa-América
Mário Dionísio
1916 – 1993
CHUVISCO
Que saudade, meu amor,
Daquela chuva miudinha
Que era tua e era minha,
Que molhava nosso rosto,
Em pleno mês de Agosto!
Hoje deitado à lareira,
Ping, ping na caleira
Contigo ao fogo enlaçado,
Sonho ainda acordado,
Com as lágrimas na folhagem,
Ping, ping, não é miragem
(Que felizes, Deus meu!).
E a chuva miudinha
Continua tua e minha,
Mas já não molha nosso rosto
E não estamos em Agosto!
In “O Livro da Nena” – Fevereiro de 2008
Papiro Editora
Maria Irene Costa
N. 1951
SAUDADE É O QUERER VIVER O JÁ VIVIDO
Saudade é querer viver o já vivido,
Querer amar e ter amado já…
Sentindo o coração anoitecido,
Querer beijar a luz que o sol lhe dá.
Saudade é ver fugir o bem perdido,
Não podendo ir com ele onde ele vá;
Ai, saudade afinal é ter nascido
Na certeza que a vida acabará!
Horizontes sem fim, novas paisagens…
Saudade é vago espelho onde as imagens
Têm vida para além da realidade.
Saudade é tudo enfim que me rodeia;
Um relevo de passos pela areia;
A morte, a vida, o amor, tudo é saudade…
Divina Tristeza – 1926
In “Poesia Completa” – 2.ª edição
(Biblioteca de Autores Portugueses)
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
Anrique Paço D’Arcos*
1906 – 1993
* (Pseudónimo de Henrique Belford Correia da Silva – Conde de Paço D’Arcos)
HÁ UMA MULHER A MORRER SENTADA
Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar
Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro
Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável
É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo
Sei que não posso chamá-la das margens
In “Dos Líquidos”
Fundação Manuel Leão – Porto – 2000
Daniel Faria
1971 – 1999
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