MOTE
Tu és pura e imaculada,
Cheia de graça e beleza;
Tu és a flor minha amada,
És a gentil camponesa.
GLOSAS
És tu que não tens maldade,
És tu que tudo mereces,
És, sim, porque desconheces
As podridões da cidade.
Vives aí nessa herdade,
Onde tu foste criada,
Aí vives desviada
Deste viver de ilusão:
És como a rosa em botão,
Tu és pura e imaculada.
És tu que ao romper da aurora
Ouves o cantor alado...
Vestes-te, tratas do gado
Que há-de ir tirar água à nora;
Depois, pelos campos fora,
É grande a tua pureza,
Cantando com singeleza,
O que ainda mais te realça,
Exposta ao sol e descalça,
Cheia de graça e beleza.
Teus lábios nunca pintaste,
És linda sem tal veneno;
Toda tu cheiras a feno
Do campo onde trabalhaste;
És verdadeiro contraste
Com a tal flor delicada
Que só por muito pintada
Nos poderá parecer bela;
Mas tu brilhas mais do que ela,
Tu és a flor minha amada.
Pois se te tenho na mão,
Inda assim acho tão pouco,
Que sinto um desejo louco:
Guardar-te no coração!...
As coisas mais belas são
Como as cria a Natureza,
E tu tens toda a grandeza
Dessa beleza que almejo,
Tens tudo quanto desejo,
És a gentil camponesa
In "Este Livro que Vos Deixo..." – Inéditos
Volume II – 3ª edição
Editorial Notícias
António Aleixo
1899 – 1949
HUMILHAÇÕES
Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job,
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.
Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.
Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.
Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.
Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia
De vê-la aproximar, sentado na plateia,
De tê-la num binóculo mordaz!
Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
— Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.
Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espectáculos do Som.
Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir, direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.
Saí; mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.
De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
— Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...
In “Cânticos do Realismo e Outros Poemas – 32 Cartas”
Edição: Teresa Sobral Cunha
Relógio D’Água Editores – Março 2006
Cesário Verde
1855 – 1886
NÃO GOSTO TANTO
Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dize
gosto muito de seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever.
In “De Florbela Espanca espanca”
Black Sun Editores
Adília Lopes
N. 1960
MAR MORTO
A noite caiu sobre o cais, sobre o mar, sobre mim...
As ondas fracas, contra o molhe, são vozes calmas de afogados.
O luar marca uma estrada clara e macia nas águas,
mas os barcos que saem podem procurar mais noite,
e com as suas luzes vão pôr mais estrelas além ...
O vento foi para outros cais levar o medo,
e as mulheres, que vêm dizer adeus e cantar,
hoje sabem canções com mais esperança,
canções mais fortes que a ressaca,
canções sem pausas onde passe uma sombra da morte...
Velhos marítimos — a terra é já a sua terra —
olham o mar mais distante e têm maior saudade...
Pára o rumor duns remos...
Não vão mais às estrelas as canções com noite, amor e morte...
Penso em todos os que foram e andam no mar,
em todos os que ficam e andam no mar também ...
E a luz do farol, lá longe, diz talvez...
In “Pregão” – 1952
Edições Saber
Alberto de Serpa
1906 – 1992
HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
In “No Reino da Dinamarca”
Editora Relógio D'Água
Alexandre O'Neill
1924 – 1986
CANTATA DO MAU MARINHEIRO
Em Calicut, uma vez,
o grande Vasco da Gama
pôs-me a ferros no porão.
Não por pena de traição
mas por eu passar na cama
trinta dias, cada mês.
Se retroava a bombarda
para acossar a moirisma
– a cambulhada casmurra -
eu dedilhava a bandurra,
recatando a minha cisma
ao anjo da minha guarda.
Quando o Santelmo chispava,
nos tops de popa a proa,
agoiros de calmaria,
eu ao bailique pedia
o caminho de Lisboa
e o corpo da minha escrava.
Quando a água escasseou,
a bolacha criou bicho
e o vinho já ia azedo,
eu nunca tremi de medo:
fiquei-me em santo de nicho
que a si mesmo se salvou.
Mas se o mar fazia espuma,
o vento cuspia pragas
e a nau parecia um trambolho,
já, do sono, abria um olho,
piscava-o de manso às vagas
– Que, enfim, a vida é só uma!
(Sei que a morte me não quer
enquanto andar embarcado,
só pecando em pensamento.
Porém sou primo do vento
e no seu corpo salgado
o mar é minha mulher...)
Não fui herói como os mais,
mas o almirante do rei
acabou por perdoar.
É que eu tinha de ficar
só nos trabalhos que sei
p`ra lhe dar estes sinais!
(A nau voltou a Belém
e eu, felizmente, estou bem!)
In “Jangada”
Coimbra Editor
António de Sousa
1898 – 1981
. Mais poesia em
. Eu li...
. Recordando... Carlos Ramo...
. Recordando... António Pin...
. Recordando... Sidónio Mur...
. Recordando... Margarida V...
. Recordando... Maria Velho...
. Recordando... Maria Irene...
. Recordando... João Rios *...