Sábado, 30 de Abril de 2011

Recordando... António Franco Alexandre

A RECTIDÃO DA ÁGUA; O CRESCIMENTO

 

a rectidão da água; o crescimento

das avenidas, ao anoitecer, sob a nua
vibração dos faróis;

o laço, mesmo, das portas só
entreabertas, onde a luz
silenciosa se demora;

são memórias, decerto, de um anterior
esquecimento, uma inocente
fadiga das coisas,

como os corpos calados, abandonados
na véspera da guerra, o teu
jeito para

o desalinho branco das palavras,
altas as
asas de nuvens no clarão do céu

em vão rigor abrindo
o destinado enigma: assim
desconhecer-te cada dia mais

ausente de recados e colheitas,
em assustado bosque, em sombra
clareira,

ao risco dos rios frívolos descendo
seixos polidos, desinscritos,
imóveis movendo

a luz do dia;
a margem recortada, aonde vivem
ausentes e seguros, os luminosos

animais do inverno;
assim são na verdade os muros claros;
assim respira o tempo, a terra intensa.


In “A Pequena Face”

Assírio & Alvim

 

António Franco Alexandre

N. 1944

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | favorito
Segunda-feira, 25 de Abril de 2011

Recordando... Manuel Alegre

ABRIL DE SIM ABRIL DE NÃO

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.


In “30 Anos de Poesia”
Publicações Dom Quixote

 

Manuel Alegre

N. 1936

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Terça-feira, 19 de Abril de 2011

Recordando... Inês Lourenço

ESTENDAIS

Em alguns invernos mais chuvosos,
em Miragaia que foi a Madragoa de
Pedro Homem de Mello, o Douro
salta a margem e entra pelos arcos
onde se demora no rés-do-chão
das casas, por duas madrugadas.

Mas são os estendais, à janela
agitados pelo vento nas abertas da chuva,
que nos trazem a urgência e a constância
dos corpos, nas mangas pendentes
de camisas, camisolas ou na roupa

interior, última margem dos íntimos rios,
onde os poliésteres aboliram os felpos, os linhos,
as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima
lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol
e à memória de obscuras lavadeiras, que faziam
heróicas barrelas na espuma inocente do sabão.

 

 

 

In “A Enganosa Respiração da Manhã” – Abril.2002

Edições ASA

 

Inês Lourenço

N. 1942

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (2) | favorito
Domingo, 17 de Abril de 2011

Recordando... António Feijó

CABELLOS BRANCOS

 

Não repares na cor dos meus cabellos

Sem ler primeiro Anacreonte;

Verás que os sonhos juvenis, mais bellos,

Tambem se evolam d'enrugada fronte.

 

O espirito do Poeta é sempre moço;

O Coração nunca envelhece...

Basta um sorriso, um nada, um alvoroço,

E tudo nelle se illumina e aquece.

 

Deusas d'eterna graça adolescente,

Jamais as Musas desdenharam

Da luz que treme incendiando o poente,

Dos rouxinoes que ao pôr do sol cantaram.

 

Fina e fragil vergontea melindrosa,

Que foi na ceifa abandonada,

Ruth, apesar de moça e de formosa,

Nos braços de Booz dorme encantada.

 

Quantas flores d'inédita fragrancia

Em mãos provectas vão abrindo...

Abisag, ao sair quasi da infancia,

No leito de David entrou sorrindo.

 

E d'esse beijo, inverno e primavera,

D'esse connubio, oh maravilha!

Como se a ruina fecundasse a hera,

Veio á luz uma estrella, que ainda brilha.

 

Esculpturaes patricias, d'olhos ledos,

Quem as lembrara, se deixassem

Que mãos obscuras, mercenários dedos,

A velhice d'Horacio engrinaldassem?

 

Quantos nomes illustres! quantos casos!

Mas que direi mais eloquente?

Não ha dias tão pallidos, e occasos

Como explosões d'uma cratera ardente?

 

Não repares na côr dos meus cabellos;

A branda luz que nelles arde,

Como o poente, das nuvens faz castellos,

Tinge d'alva o crepusculo da tarde...

 

Muita vez os cabellos embranquecem

Na dor d'horriveis soffrimentos...

Não são os annos que nos envelhecem;

«São certas horas más, certos momentos...»

 

 

In “Sol de Inverno”

Livrarias Aillaud E Bertrand – 1922

 

António Feijó

1859 – 1917

 

MANTEM A GRAFIA ORIGINAL

 

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Quarta-feira, 13 de Abril de 2011

Recordando... Maria do Rosário Pedreira

SE TERMINAR ESTE POEMA, PARTIRÁS

 

Se terminar este poema, partirás. Depois da

mordedura vã do meu silêncio e das pedras

que te atirei ao coração, a poesia é a última

coincidência que nos une. Enquanto escrevo

 

este poema, a mesma neblina que impede a

memória límpida dos sonhos e confunde os

navios ao retalharem um mar desconhecido

 

está dentro dos meus olhos – porque é difícil

olhar para ti neste preciso instante sabendo que

não estarias aqui se eu não escrevesse. E eu, que

 

continuo a amar-te em surdina com essa inércia

sóbria das montanhas, ofereço-te palavras, e não

beijos, porque o poema é o único refúgio onde

podemos repetir o lume dos antigos encontros.

 

Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,

que apenas escreva até ao fim mais esta página

(que, como as outras, será somente tua – esse

 

beijo que já não desejas dos meus lábios). E eu, que

aprendi tudo sobre as despedidas porque a saudade

nos faz adultos para sempre, sei que te perderei

 

em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;

e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á

a última coincidência que nos une.

 

 

In “O Canto do Vento nos Ciprestes”

Editora Gótica,

 

Maria do Rosário Pedreira

N. 1959

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito
Quinta-feira, 7 de Abril de 2011

Recordando... David Mourão-Ferreira

CANÇÃO AMARGA

 

Que importa o gesto não ser bem

o gesto grácil que terias?

– Importa amar, sem ver a quem...

Ser mau ou bom, conforme os dias.

 

Agora, tu só entrevista,

quantas imagens me trouxeste!

Mas é preciso que eu resista

e não acorde um sonho agreste.

 

Que passes tu! Por mim, bem sei

que hei-de aceitar o que vier,

pois tarde ou cedo deverei

de sonho e pasmo apodrecer.

 

Que importa o gesto não ser bem

o gesto grácil que terias?

– Importa amar, sem ver a quem...

Ser infeliz, todos os dias!

 

 

In "A Secreta Viagem"

Edições Távola Redonda

 

David Mourão-Ferreira 

1927 – 1996                                      

 

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (2) | favorito
Sexta-feira, 1 de Abril de 2011

Recordando... Al Berto

É NO SILÊNCIO

é no silêncio
que melhor ludibrio a morte

não
já não me prendo a nada
mantenho-me suspenso neste fim de século
reaprendo os dias para a eternidade
porque onde termina o corpo deve começar
outra coisa outro corpo

ouço o rumor do vento
vai
alma vai
até onde quiseres ir

(O Medo – Contexto – Lisboa)

 

In “Ler Por Gosto”

Areal Editores

 

Al Berto

1948 – 1997

 

publicado por cateespero às 00:00
link do post | Deixe seu comentário | ler comentários (1) | favorito

.Eu

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
14
15
16
17
18
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Ano XVI

.posts recentes

. Recordando... Ricardo Gil...

. Recordando... Saúl Dias *...

. Recordando... Ruy Belo

. Recordando... Rui Miguel ...

. Recordando... Rui Pires C...

. Recordando... Sebastião d...

. Recordando... Augusto Mol...

. Recordando... Egito Gonça...

. Recordando... António Ram...

. Recordando... Maria Auror...

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

.tags

. todas as tags

blogs SAPO

.subscrever feeds