Terça-feira, 29 de Março de 2011

Recordando... Guilherme de Azevedo

Á HORA DO SILÊNCIO

 

Eu quis ontem sonhar, sentir como um romântico
A doce embriaguez do pálido luar,
Ouvindo em pleno azul passar o imenso cântico
Dos astros no seu giro e em sua luta o mar!

A cidade dormia o sono dos devassos;
Aquele sono turvo, infecto e sensual:
E a lua, antiga fada, erguia nos espaços
Tranquila e sempre ingénua a fronte de vestal!

E sobre a quietação das coisas vis e exóticas
Sentiam-se as febris, cruéis respirações,
Dos tristes hospitais e das virgens cloroticas,
Dos amantes fatais da febre e das paixões!

A noite era em silencio, a atmosfera doce
E ria a natureza aos beijos dum bom Deus.
De súbito escutei, ao longe, o quer que fosse
Dum canto que supus então baixar dos céus!

Atento ao vago som, porém, a pouco e pouco
Senti que era uma voz disforme e sensual,
Soltando uma canção naquele acento rouco
Da triste inspiração alcoólica e brutal!...

Ó terna vagabunda, enamorada lua!
Enquanto ias assim, diáfana e sem véu,
Uma triste mulher passava, então, na rua
Cuspindo uma porção d'infâmias para o céu!

 

 

In “A Alma Nova”

Impresso na Typographia Sousa & Filho – Lisboa

 

Guilherme de Azevedo

1839 – 1882

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Sexta-feira, 25 de Março de 2011

Recordando... Fátima Andersen

NÃO PRONUNCIO

 

Não pronuncio o teu nome

porque tens para mim

a inominável realidade da essência.

Não te sei

não te lembro

só te vivo.

Por teus olhos

(talvez claríssimos)

me entra o mundo. 

 

 

In “PARTITURA”

Edições Colibri – Abril de 1999

 

Fátima Andersen

N. 1940



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Segunda-feira, 21 de Março de 2011

Recordando... Castro Reis

CATEDRAL DE POESIA

 

Meu Porto, de António Nobre,

Garrett e Júlio Dinis.

De Louros o Céu te cobre,

– Que fosses grande Deus quis!

 

De Augusto Gil foste berço

E de Ramalho Ortigão.

E, entre outros de alto apreço,

Do grande Raúl Brandão!

 

E de tantos que te amaram

Enaltecendo o teu chão:

Não sendo filhos, provaram

Que o foram p’lo coração!

 

P’las tuas páginas de ouro

De rutilantes clarões:

Tu és Sagrado Tesouro

Desta Pátria de Camões.

 

Cidade feita de encanto,

Eu te exalto de alegria.

Ao teu nome ergo o meu canto,

– És Catedral de Poesia!

 

 

In ”Esta Cidade Que Eu Amo”

Edição do Grupo de Acção Recreativa

e  Cultural Semente Nova (GARC)

Agosto de 1985 – Porto

 

Castro Reis

1918 – 2007

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Quinta-feira, 17 de Março de 2011

Recordando... Artur F. Coimbra

BIBLIOTECA

 

Abre-se a arca dos sonhos

sob os dedos que viram a página

brancos leves divinos

de fantasia

Abre-se o livro e saltam histórias

memórias

palavras de oiro

corações em música

baladas de amor ao encontro dos lábios

 

os sonhos povoam os livros

que as mãos das crianças devoram

na biblioteca. E são os Pinóquios

Mosqueteiros, Fadas Madrinhas

Bruxas Más, Principezinhos

Como são Tom Sawyer, Sandokan

ou Robinson Crusoe de todas as infâncias

 

E as asas voam sem limites

a riscar o infinito.

São lombadas e lombadas

de saber universal, olhos que procuram

ansiosos romances poemas filosofia

como quem busca a geometria

rumorosa da plenitude

 

Horas perdidas, horas ganhas

no horizonte amigo do Verbo

entre o azul do céu

e a sinfonia quente do livro

 

1997

 

In “Poetas & Trovadores”

Ano XVlll – 3ª edição – n.º 1 – Abril de 1998

 

Artur F. Coimbra

N. 1956

 

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Domingo, 13 de Março de 2011

Recordando... Vitorino Nemésio

MUITO ME TARDA

 

Tarda na Guarda amiga em flor:
Cinza de pedra não seria,
Mas era assim como uma dor
Que da viagem se fazia.
Como uma ovelha cujo velo
À força de anos e de ervinhas
Alvo se torna, de amarelo
Aos olhos de aves ribeirinhas,
Fronteira tive a tristeza
A tudo sonhado um dia:
A Guarda é forte, que a reveza
Com um quase nada de alegria.

Muito me tarda a morte! Houvera
De viver rei, anjo ou pastor...
Era outra a pele: mudava de era
E ovelha parda
Por amor.

Mas só na Guarda!
Tardar ao longe, só na Guarda,
A que me espera.

 


In “A Poesia das Beiras” – (Antologia)

Edições Caixotim

 

Vitorino Nemésio

1901 – 1978

 

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Quarta-feira, 9 de Março de 2011

Recordando... Albano Martins

ASSIM SÃO AS ALGAS

Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.


In “Escrito a Vermelho”

Editora Campo das Letras

 

Albano Martins

N. 1930







 

 

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Sábado, 5 de Março de 2011

Recordando... Eugénio de Andrade

PROCURO-TE

 

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.


In “As Palavras Interditas”

Centro Bibliográfico – Lisboa

 

Eugénio de Andrade

1923 – 2005

 

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Terça-feira, 1 de Março de 2011

Recordando... Maria Manuela Couto Viana

AMIGO! AMIGO!

 

Lembras-te do  jardim irreal e triste?

Do lago onde  boiavam peixes de jade?

Existe ainda esse jardim irreal e triste?

Para voltar sempre parece tarde.

 

Dormias como um deus sobre anémonas brancas

Corno eras tão jovem, tão simples, tão claro!

Teu rosto e tuas mãos eram anémonas brancas.

Só a memória guarda o teu retrato.

 

Que fizemos do nosso único momento?

Do grande? do verdadeiro, do exacto?

Agora o que há entre nós não tem momento;

Está fora do tempo e do espaço.

 

 

In “As Folhas de Poesia Távola Redonda"

Fundação Calouste Gulbenkian

Boletim Cultural – Série VI – n.º 11 – Outubro.1988

 

Maria Manuela Couto Viana

1919 – 1983

 

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