Sábado, 29 de Janeiro de 2011

Recordando... Ana Paula Inácio

TENS AS MÃOS MUITO FRIAS

Tens as mãos muito frias
e a água corta-as
como lâmina fina
para ver ao microscópio,

tens as mãos muito brancas,
linho cru,
e a água como fios

não sentes as mãos
mas que importa?

deixaste-as nas armadilhas
e o lince,
em troca,
deu-te os olhos,

sabes que a lepra
não é uma doença dos nossos dias

 

 

In “Vago Pressentimento, Azul Por Cima”

Ilhas – 2000


Ana Paula Inácio

N. 1966

 

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Terça-feira, 25 de Janeiro de 2011

Recordando... Ruy Cinatti

ABRI MINHA JANELA AO VENTO NORTE

 

Abri minha janela ao vento norte

A ver se o frio me acordava

De um sonho em que eu próprio duvidava.

- No céu brilhavam estrelas mais que nunca.

Em vão, desde então, eu procurei

Lembrar o seu olhar, a sua imagem

Tão bela, tão perfeita, mais miragem.

- No céu brilhavam estrelas mais que nunca.

 

 

In “Nós Não Somos Deste Mundo”

Edições Atica

 

Ruy Cinatti

1915 – 1986

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Sexta-feira, 21 de Janeiro de 2011

Recordando... Mário Castrim

A LETRA Q

 

Estou sempre muito longe.

Dizem qualquer coisa e eu pergunto:

- Quê?

Pergunto sempre:

- Quê?

Não sei porquê.

O meu amigo V

Zanga-se e diz:

És surdo ou quê?

E eu repondo sinceramente:

- Sou quê.

 

 

In “Estas são as Letras”

Editorial Caminho

 

Mário Castrim

pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca

1920 – 2002

 

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Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011

Recordando... Alexandre O’Neill

AMIGO

 

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

 

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

 

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

 

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!

 

 

In “No Reino da Dinamarca”

Guimarães Editores

 

Alexandre O’Neill

1924 – 1986

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Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2011

Recordando... Mário Henrique Leiria

ESCLARECIMENTO

 

Quando estamos cansados

Deitamos o corpo

E adormecemos

 

Às vezes não

 

Procuramos outra mão

Outros olhos

Que nos limpem a fadiga

E evitem o sono

Que nos vem antigo

 

Quando estamos cansados

Podemos erguer o corpo

E acordar

E morrer acordados

Sem cansaço

           

 

In “Novos Contos do Gin”

Editorial Estampa

 

Mário Henrique Leiria

1923 – 1980

 

 

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Domingo, 9 de Janeiro de 2011

Recordando... Ruy Belo

POEMA PARA CATARINA

 

Hei-de levar-te filha a conhecer a neve
tu que sabes do sol e das marés
mas nunca repousaste os teus pequenos pés
na alvura que só longe e em ti houve

 

Tinha estado na morte e não pudera
aguentar tamanha solidão
mas depois tive a companhia do nevão
e tu hás-de vir filha com a primavera

 

E o deslumbrante resplendor da alegria
tua felicidade eterna à vida
já não permitirão tua partida
quando raiar fatal o novo dia

 

As barcas carregadas com as rosas
virão perto daquela pura voz
abandonada pelos meus longínquos avós
em lagoas profundas perigosas

 

Não me afecta o mínimo cuidado
sinto-me vertical sinto-me forte
embora leve em mim até à morte
a cabeça de um príncipe coitado

 

Naquelas madrugadas primitivas
eu segredava um secreto pranto
vizinho da alegria enquanto
pelos dois tu ias de mãos vivas

 

O costume da minha solidão
é ver pela janela as oliveiras
que de todas as árvores foram as primeiras
que tocaram meu jovem coração

 

Purificado pelo tempo estou
um tempo de feroz esquecimento
vem minha filha vem neste momento
em que eu liberto ao teu encontro vou

 

Recordo-me do teu cabelo de chuva
quando tu caminhavas ágil e ladina
pelos desfiladeiros da neblina
nessa distante região da uva

 

Minha paixão viril serena pelos ritos
deseja que na minha companhia
tu sejas imolada à alegria
na surda região alheia aos gritos

 

Não olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim é como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade

 

O tempo em que viesses sim seria
um tempo vertebrado um tempo inteiro
e não meras palavras arrancadas ao tinteiro
e alinhadas em fugaz caligrafia

 

Viesses tu que a tua vinda afastaria
todos os meus cuidados transeuntes
e para sempre alegre viveria
os meus dias infantes já distantes

 

A solução da solidão compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a solução ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu país do nada

 

Com a voracidade do olvido
seria só tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido

 

Volta com as primeiros anjos de dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e então a tua vida há-de ser a minha arte
e o teu vulto a única coisa que relembro

O passado é mentira digo eu
sensível ao esplendor do meio-dia
e sob a árvore plena de alegria
o mínimo cuidado esmoreceu

 

Ao grande peso de tanto passado
com a insónia da dúvida na testa
basta a tua presença que protesta
e todo eu me sinto renovado

 

 

Madrid, 15/V/1977

 

In “Obra Poética” – Volume 2

 

Ruy Belo

1933 – 1978

 

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Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011

Recordando... António Ferreira

DOS MAIS FORMOSOS OLHOS

 

Dos mais formosos olhos, mais formoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um espírito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indigno
Me sinto, e tanto mais assim ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco da alma só, pouco da vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.

 

 

In “Poemas Lusitanos” – 1598

Mandado publicar por seu filho,

Miguel Leite Ferreira

 

António Ferreira

1528 – 1569

 

 

 

 

 

 

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Sábado, 1 de Janeiro de 2011

Recordando... Augusto Gil

SEXTILHAS A UM MENINO JESUS DE ÉVORA

Num convento solitário
De Évora, cidade clara,
Claro celeiro de pão,
Existe uma imagem rara,
Obra dum imaginário
Dos tempos que já lá vão…

É um Menino Jesus,
De bochechinha brunida
Cor de maçã camoesa,
Mas no seu rosto transluz
Uma expressão dolorida
Que enche a gente de tristeza…

De tantíssimas imagens,
Nenhuma vi que mais prenda,
Que maior ternura expanda,
Com suas calças de renda,
Seu vestido de ramagens,
- E coroa posta à banda…

Gordo, nédio, bem trajado,
Deveria ser feliz,
Deveria estar sorrindo;
Mas o seu olhar magoado,
Tão magoado, tão lindo,
Que não o é, bem no diz…

Se não fosse por ser Deus
E o seu poder infinito
Ter sempre que demonstrar
Cá na terra e lá nos céus,
Estenderia o beicito
- E desatava a chorar!…

Corre o tempo descuidado,
Passa uma hora, outra hora,
Atrás desta outras se vão,
E, quem o vê, encantado,
Sem se poder ir embora
Numa perpétua atracção…

Eu entrei com o sol a pino.
Pouco depois da chegada
(Pouco a mim me pareceu)
Deixei de ver o Menino…
Não era a vista cansada,
- Foi a noite que desceu…

Mesmo assim lá ficaria,
Absorto em muda prece
De quem mal sabe rezar,
Se o sacristão não viesse,
Com rodas de Senhoria,
Dizer-me que ia fechar…

Pudesse tê-lo trazido
E não fosse eu rico, apenas,
De fantasias, de esp'ranças,
Punha-o num nicho florido
Por sobre as camas pequenas
Dum hospital de crianças…

Dum hospital modelar
Sustentado por meus bens,
Entre olaias e roseiras,
Cheio de sol, cheio de ar,
E em que as boas enfermeiras
- Seriam as próprias mães…

A mais ampla enfermaria
Desse escolhido local
De bondade e sofrimento
- Era o fundo natural
Da funda melancolia
Do Menino do convento…

 

 

In “Luar de Janeiro”

Colecção – Autores Portugueses de Ontem – 1989

Estante Editora

 

Augusto Gil

1873 – 1929

 

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