TENS AS MÃOS MUITO FRIAS
Tens as mãos muito frias
e a água corta-as
como lâmina fina
para ver ao microscópio,
tens as mãos muito brancas,
linho cru,
e a água como fios
não sentes as mãos
mas que importa?
deixaste-as nas armadilhas
e o lince,
em troca,
deu-te os olhos,
sabes que a lepra
não é uma doença dos nossos dias
In “Vago Pressentimento, Azul Por Cima”
Ilhas – 2000
Ana Paula Inácio
N. 1966
ABRI MINHA JANELA AO VENTO NORTE
Abri minha janela ao vento norte
A ver se o frio me acordava
De um sonho em que eu próprio duvidava.
- No céu brilhavam estrelas mais que nunca.
Em vão, desde então, eu procurei
Lembrar o seu olhar, a sua imagem
Tão bela, tão perfeita, mais miragem.
- No céu brilhavam estrelas mais que nunca.
In “Nós Não Somos Deste Mundo”
Edições Atica
Ruy Cinatti
1915 – 1986
A LETRA Q
Estou sempre muito longe.
Dizem qualquer coisa e eu pergunto:
- Quê?
Pergunto sempre:
- Quê?
Não sei porquê.
O meu amigo V
Zanga-se e diz:
És surdo ou quê?
E eu repondo sinceramente:
- Sou quê.
In “Estas são as Letras”
Editorial Caminho
Mário Castrim
pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca
1920 – 2002
AMIGO
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
In “No Reino da Dinamarca”
Guimarães Editores
Alexandre O’Neill
1924 – 1986
ESCLARECIMENTO
Quando estamos cansados
Deitamos o corpo
E adormecemos
Às vezes não
Procuramos outra mão
Outros olhos
Que nos limpem a fadiga
E evitem o sono
Que nos vem antigo
Quando estamos cansados
Podemos erguer o corpo
E acordar
E morrer acordados
Sem cansaço
In “Novos Contos do Gin”
Editorial Estampa
Mário Henrique Leiria
1923 – 1980
POEMA PARA CATARINA
Hei-de levar-te filha a conhecer a neve
tu que sabes do sol e das marés
mas nunca repousaste os teus pequenos pés
na alvura que só longe e em ti houve
Tinha estado na morte e não pudera
aguentar tamanha solidão
mas depois tive a companhia do nevão
e tu hás-de vir filha com a primavera
E o deslumbrante resplendor da alegria
tua felicidade eterna à vida
já não permitirão tua partida
quando raiar fatal o novo dia
As barcas carregadas com as rosas
virão perto daquela pura voz
abandonada pelos meus longínquos avós
em lagoas profundas perigosas
Não me afecta o mínimo cuidado
sinto-me vertical sinto-me forte
embora leve em mim até à morte
a cabeça de um príncipe coitado
Naquelas madrugadas primitivas
eu segredava um secreto pranto
vizinho da alegria enquanto
pelos dois tu ias de mãos vivas
O costume da minha solidão
é ver pela janela as oliveiras
que de todas as árvores foram as primeiras
que tocaram meu jovem coração
Purificado pelo tempo estou
um tempo de feroz esquecimento
vem minha filha vem neste momento
em que eu liberto ao teu encontro vou
Recordo-me do teu cabelo de chuva
quando tu caminhavas ágil e ladina
pelos desfiladeiros da neblina
nessa distante região da uva
Minha paixão viril serena pelos ritos
deseja que na minha companhia
tu sejas imolada à alegria
na surda região alheia aos gritos
Não olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim é como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade
O tempo em que viesses sim seria
um tempo vertebrado um tempo inteiro
e não meras palavras arrancadas ao tinteiro
e alinhadas em fugaz caligrafia
Viesses tu que a tua vinda afastaria
todos os meus cuidados transeuntes
e para sempre alegre viveria
os meus dias infantes já distantes
A solução da solidão compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a solução ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu país do nada
Com a voracidade do olvido
seria só tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido
Volta com as primeiros anjos de dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e então a tua vida há-de ser a minha arte
e o teu vulto a única coisa que relembro
O passado é mentira digo eu
sensível ao esplendor do meio-dia
e sob a árvore plena de alegria
o mínimo cuidado esmoreceu
Ao grande peso de tanto passado
com a insónia da dúvida na testa
basta a tua presença que protesta
e todo eu me sinto renovado
Madrid, 15/V/1977
In “Obra Poética” – Volume 2
Ruy Belo
1933 – 1978
DOS MAIS FORMOSOS OLHOS
Dos mais formosos olhos, mais formoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:
Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um espírito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indigno
Me sinto, e tanto mais assim ditoso.
Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco da alma só, pouco da vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!
Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.
In “Poemas Lusitanos” – 1598
Mandado publicar por seu filho,
Miguel Leite Ferreira
António Ferreira
1528 – 1569
SEXTILHAS A UM MENINO JESUS DE ÉVORA
Num convento solitário
De Évora, cidade clara,
Claro celeiro de pão,
Existe uma imagem rara,
Obra dum imaginário
Dos tempos que já lá vão…
É um Menino Jesus,
De bochechinha brunida
Cor de maçã camoesa,
Mas no seu rosto transluz
Uma expressão dolorida
Que enche a gente de tristeza…
De tantíssimas imagens,
Nenhuma vi que mais prenda,
Que maior ternura expanda,
Com suas calças de renda,
Seu vestido de ramagens,
- E coroa posta à banda…
Gordo, nédio, bem trajado,
Deveria ser feliz,
Deveria estar sorrindo;
Mas o seu olhar magoado,
Tão magoado, tão lindo,
Que não o é, bem no diz…
Se não fosse por ser Deus
E o seu poder infinito
Ter sempre que demonstrar
Cá na terra e lá nos céus,
Estenderia o beicito
- E desatava a chorar!…
Corre o tempo descuidado,
Passa uma hora, outra hora,
Atrás desta outras se vão,
E, quem o vê, encantado,
Sem se poder ir embora
Numa perpétua atracção…
Eu entrei com o sol a pino.
Pouco depois da chegada
(Pouco a mim me pareceu)
Deixei de ver o Menino…
Não era a vista cansada,
- Foi a noite que desceu…
Mesmo assim lá ficaria,
Absorto em muda prece
De quem mal sabe rezar,
Se o sacristão não viesse,
Com rodas de Senhoria,
Dizer-me que ia fechar…
Pudesse tê-lo trazido
E não fosse eu rico, apenas,
De fantasias, de esp'ranças,
Punha-o num nicho florido
Por sobre as camas pequenas
Dum hospital de crianças…
Dum hospital modelar
Sustentado por meus bens,
Entre olaias e roseiras,
Cheio de sol, cheio de ar,
E em que as boas enfermeiras
- Seriam as próprias mães…
A mais ampla enfermaria
Desse escolhido local
De bondade e sofrimento
- Era o fundo natural
Da funda melancolia
Do Menino do convento…
In “Luar de Janeiro”
Colecção – Autores Portugueses de Ontem – 1989
Estante Editora
Augusto Gil
1873 – 1929
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