A UMA CRUELDADE FORMOSA
A minha bela ingrata
Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
São os olhos reluzentes
(Por quem choro e suspiro,
Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito),
Celestial safiro;
Os beiços são rubins, perlas os dentes;
A lustrosa garganta
De mármore polido;
A mão de jaspe, de alabastro a planta.
Que muito, pois, Cupido,
Que tenha tal rigor tanta lindeza,
As feições milagrosas,
Para igualar desdéns a formosuras,
De preciosos metais, pedras preciosas,
E de duros metais, de pedras duras?
Fénix Renascida
In “Breve Antologia Poética do Período Barroco”
Livª. Civilização Editora – Porto
e Contexto Editora – Lisboa
Jerónimo Baía
1620/30 – 1688
TUMULAR
Uma laje cinzenta nos separa
e dois metros de terra.
Tu, aí, és a paz.
Eu, aqui, sou a guerra.
Trago-te cravos, simples cravos brancos.
Cravos mais leves do que uma oração.
Sem a mácula seca das palavras
desfiadas em vão.
Sobre a laje os deponho, os distribuo
ao longo do que, certo, já não és:
ali, teus olhos líquidos e fundos;
aqui teu coração; além, teus pés.
Recolho então as flores decapitadas.
Amarro-as ao meu peito, a tudo o que vivi,
e regresso contigo à cidade habitada.
Tu, aí, és a paz: não precisas de nada.
Eu, aqui, sou a guerra: e preciso de ti.
In “Cidade Sem Tempo”
Edição do Autor – Lisboa – 1985
António Luís Moita
N. 1925
UMA CIDADE
Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de Junho.
Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.
In "Castália e Outros Poemas"
Campo das Letras – 2001
Albano Martins
N. 1930
OUTONO
Partiram no Outono e nunca mais voltaram
nem vão voltar
os que amei e me deixaram
a dor que sempre me há-de acompanhar
até o Outono me vir também buscar.
Não me falem, portanto, do Outono
nem das folhas caídas pelo chão,
triste imagem do abandono
que à noite me rouba o sono
e agrava a solidão.
Quero ter antes, para sempre, o Verão.
In “Por Amor e Outros Poemas”
Papiro Editora – 2008
Torquato da Luz
N.1943
DESENHO
Desenho com um lápis,
acabado de afiar,
os traços que contornam
o teu rosto
onde a barba se destaca,
mas não sei desenhar
o tom da tua voz.
Talvez o pinte de azul-maresia
e o acaricie
num longo gesto,
pronunciado
Pelo bico de meu lápis,
junto à nascente
do dia
com a sofreguidão
da maré
In “Golpe de Asa”
Apenas Livros Editora
Maria Paula Raposo
N. 1954
RETRATO DO POETA QUANDO JOVEM
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
In “Os Poemas Possíveis”
Editorial Caminho – 1982
José Saramago
1922 – 2010
SYRINX, FICÇÃO PASTORAL (I)
Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.
In “Quatro Caprichos”
Assírio & Alvim – 1999
António Franco Alexandre
N.1944
A CONCHA PERFEITA DAS TUAS MÃOS
sei um jeito de te fazer ficar
murmuravas nas manhãs em que nascíamos
ávidos de nós
e éramos tão novos
e faltávamos às aulas
posso ter esquecido admito muita coisa
caminhos promessas lugares a cor
da saia que vestia no dia em que não voltei
muita coisa admito menos
a concha perfeita das tuas mãos sobre o meu peito
o cheiro das laranjeiras as cartas
em papel tão adolescente e azul
o esplendor de junho à mesa familiar
os espelhos garantindo-nos um lugar único na casa
posso ter esquecido admito muita coisa
menos os nossos corpos simultâneos
às portas do amor
no arco da minha pele que humidamente
se abria ao lume da tua língua
nessas manhãs em que jurámos
não morrer nunca
In “Dois Corpos Tombando na Água”
Editorial Caminho – 2007
Alice Vieira
N. 1943
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