NÃO É DIFÍCIL UM HOMEM APAIXONAR-SE
Não é difícil um homem apaixonar-se.
Ferir a sua paisagem,
cinzas de um passado caído, fluente.
Ao fim de vidas partilhadas pode ser que
diga « estremeci
durante anos sem te abraçar ». Agora é tarde.
Agora é tarde sobre a terra cercada.
Por planícies ficou o desespero,
a dor lilás dos homens soçobrados
na paciência nocturna.
Só depois do terror os cães ladram fielmente
aos portais da manhã, só
após o gume das vidas partilhadas.
« Passei a vida a fugir para a tua boca », e
confundo já o teu rosto
com um qualquer.
In “A Função do Geógrafo”
Quasi Edições
Rui Cóias
N. 1966
POEMA DO AMOR DESESPERADO
Espera um pouco (até que o amor de todo nos destrua!)
Amanhã, amanhã é que esta história há-de ser contada.
Então, da nossa vida e amores, não haverá mais nada
Do que um fantasma branco balouçando à lua.
Mas é agora que tudo é verdadeiro. Amanhã, quando
Não houver de nós ambos nem o nome escrito
Em letras de pedra numa pedra num canto do mundo,
Nina, quem saberá o que foi o nosso amor profundo?
O nosso amor maldito?
O nosso amor tão grande?
É preciso, é preciso dar notícia aos grandes profetas do futuro!
(Não vão depois dizer que o nosso amor era pecado...)
Não havia nenhum muro, e para trazer calado
O mundo, é que os dois, a pedra e lágrimas, levantámos a
[enorme e intransponível sombra deste muro!
In «O Futuro em Anos-Luz»
Antologia de Poesia Portuguesa
Sel.e org. Valter Hugo Mãe
Edições Quasi
Eduíno de Jesus
N. 1928
MIRAGAIA
Aqui, onde esta noite nunca cessa,
Foi Miragaia a minha Madragoa.
Aqui, em frente ao rio, oiço a promessa
Do mar que ajoelha, enquanto me atordoa.
Aqui, sei onde sangra o lábio oculto.
De quem me vê, até de olhos fechados!
E, como os cegos, reconheço um vulto,
Pelo roçar dos dedos namorados...
Deviam chamar Pedro, em vez de Porto,
Ao burgo, se é tal qual do meu tamanho!
Aqui
Nasci,
Porém nasci já morto,
Imóvel, surdo, triste, mudo, estranho...
Deu-me Deus ele, apenas, por amigo.
Deitamo-nos, cismando, lado a lado...
Seu corpo, rijo e nu, dorme comigo.
Mas fico, entre os seus braços, acordado!
In “Poesias Escolhidas”
Imprensa Nacional – Casa da Moeda
Pedro Homem de Mello
1904 – 1984
POEMA DOS JOVENS CONSCIENTES
Nós somos o que esperamos
todos ainda iguais aos mortos recentes
mas cobertos das cicatrizes
colhidas na seiva dos ramos molhados de sangue
na alta lua esgarçada das vigílias
no último eco mortífero e vibrante
Nossos cabelos rescendem à cinza que pulsa no vento
há um claro travo de sal em nossa boca
e trazemos nos olhos
a transparência das manhas tintas de medo
Sabemos
como vibra uma lança de dentro do tempo
a crescente medida dos gumes cintilantes
e o peso
das granadas soltas dos longos dedos tépidos
e desdobradas ao limite do inferno
Nós somos o que esperamos
todos ainda iguais aos mortos recentes
ultrapassar os trilhos calcinados
em filas densas ombro a ombro de mãos nuas
através do puro silêncio dos horizontes magoados
(sonhando trigo verde que toque a nossa face)
em busca da palavra
que purifique o sal dos nossos lábios
Cabo Delgado – Pemba – 1970
In “Revista Colóquio/Letras” – Poemas
N.º 36 de Março.1977
Fundação Calouste Gulbenkian
Glória de Sant'Anna
1925 – 2009
CANTAR DE AMIGO
Eu e tu: milhões!…
Entre nós – perto ou longe!
– entre nós rios e mares
montanhas e cordilheiras…
Eu e tu perdidos
nesta distância sem fim do desconhecido.
Eu e tu unidos
para além das cordilheiras
por sobre mares de diferença
na comunhão de nossos destinos confundidos
– a minha e a tua vida
correndo para a confluência
num mesmo Norte.
Eu e tu amassados
nesta angústia que é de nós,
minha e tua,
e mais do que de nós…
Eu e tu
carne do mesmo corpo
amor do mesmo amor
sangue do mesmo sacrifício!
Eu e tu
elos da mesma cadeia
grãos da mesma seara
pedras da mesma muralha!
Eu e tu, que não sei quem és.
Que não sabes quem sou:
– Eu e tu: Amigo! Milhões…
In “Antologia de Poetas Alentejanos”
Edição da C. M. de Vila Viçosa
Joaquim Namorado
1914 – 1986
INTERIOR
Os espelhos estudam pelo inverno
o brilho do seu timbre envelhecido.
Auscultam nimbos últimos. No intento
de sugerirem cantos, quando os vidros
ângulos abrem fundos ao silêncio
e o crescimento dum lugar antigo.
A luz, depois, recolhe-se ao momento
de estar ensimesmando os tempos idos.
Que, frágeis, fulgem, quase nem reflexos
de um mundo sonolento de vestígios.
Depois ainda, a superfície um vento
esculpe. Efígies e apagados signos
adormecem em paz. Enquanto o espelho
atento guarda a escuridão do sítio.
In “Uso de Penumbra” – 1995
Colecção Poesia
Edições Afrontamento
Fernando Echevarría
N. 1929
XÁCARA DAS MULHERES AMADAS
Quem muitas mulheres tiver,
em vez duma amada esposa,
mais se afirma e se repousa
pera amar sua mulher;
quem isto não entender…
em cousas d’amor não ousa,
em cousas d’amor não quer!
Quantas mais, mais se descansa,
mais a gente serve a todas;
quantas mais forem as bodas,
quantos mais os pares da dança,
menos a dança nos cansa
o gosto d’andar nas rodas.
Que quantas mais, mais detido
a cada uma per si;
nem cansa tanto o que vi,
nem fica o gosto partido;
ao contrário, é acrescido
a cada uma per si!
No paladar de mudar
mais se sente o gosto agudo:
que amar nada ou amar tudo
é estar pronto a muito amar;
o enjoo vem de não estar
a par do nada e do tudo.
Mais fàcilmente se chega
pera muitas que pera uma;
e a razão é porque, em suma,
se esta razão me não cega,
quem quer que muitas adrega
é como tendo… nenhuma!
Com muitas, descanso vem,
faz o desejo acrescido:
que é o mais apetecido
aquilo que se não tem;
e o apetite é o bem;
e em saciá-lo é perdido.
Também a mulher que tem
seu marido repartido
é mais gostosa do bem
que advém de seu marido!
Tão gostosa e recolhida,
tão pronta e tão conformada,
quanto o gosto é não ter nada;
porque o gosto é ser servida
e não o estar contentada.
O gosto é cousa corrente,
e quem o tem já não sente
o gosto dessa corrida,
que tê-lo, é cousa… jazente…
que tê-lo, é cousa… perdida!
Ora, pois, nesta jornada
não vi nada mais de amar
que ter muito por chegar
e cousa alguma chegada;
não vi nada mais de ter…
que ter muito que perder…
e cousa alguma ganhada!
In “Cancioneiro do Salão dos Independentes”
– Líricas Portuguesas
Portugália Editora – 3.ª Série
Mário Saa
1893 – 1971
PRAIA DO ENCONTRO
Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…
Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…
Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…
Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.
In "Tempestade de Verão" – Obra Poética
Editorial Presença
David Mourão-Ferreira
1927 – 1996
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