O ESPELHO TRAIDOR
Enganam muitas vezes os espelhos,
Fazem dum quadro alegre um quadro triste.
Mas, direi da justiça que me assiste,
Posta a mão sobre a cruz dos Evangelhos.
Nesses teus olhos, de chorar vermelhos,
Perpassa ira, e como lança em riste,
Me fere os seios d’alma, por que viste
A tua aia assentada em meus joelhos!
Para que dessa dor não fique rastro
(Nem havia razão de tanto alarme)
Escuta o que ela disse ao teu poetastro,
Escuta-o e o riso o teu furor desarme:
“Quero, de perto, contemplar um astro…”
E pôs-se, como a viste, a contemplar-me.
In “Ecos do Passado” – 1914
Companhia Portuguesa Editora – Porto
João Penha
1838 – 1919
O VELHO MARINHEIRO
Quem é tu pobre velho, à beira mar,
Fitando há tanto tempo o horizonte?
Porque vejo teus olhos a chorar,
Tão enrugada, assim, a tua fronte?
Será que uma lembrança, uma saudade,
Se torna tão distante e sonhador?
Será que já não tens felicidade?
Responde, fala, diz-me, por favor.
E o pobre velho de expressão vincada,
Qual testemunho de uma vida dura,
Olhando-me disse: (com voz velada,
Lenta, pausada e cheia de amargura)
Eu sou aquele que sulcou esteiras,
rasgando selvas, arroteando mares;
Eu sou aquele que transpôs barreiras,
Que forjou raças e construiu lares.
Eu sou aquele que adubou, com sangue,
Lavras imensas, em milhares de terras;
Eu sou aquele que chorou exangue,
Seus filhos mortos noutras tantas guerras.
Mas hoje... nada sou. Só nostalgia!
Estátua viva de alucinações!
Sou Alcácer-Quibir em agonia,
Ouvindo ao longe, os versos de Camões!
Perguntaste quem sou? Sou o passado
De alguém que ditou leis, ao mundo inteiro;
Moribundo, cuspido, espezinhado,
O velho Portugal, o Marinheiro.
Guimarães, 1975
In “Poetas & Trovadores”
Ano XVlll – 3ª edição – n.º 1 – Abril de 1998
José Abílio Gouveia
1916 – 1996
DIAMOR
É de cravo. Toque de pétala em minha boca
a tua língua redonda. Talo cálido
macio de ponta subtil de tamanho.
Olhos para cima ardendo incessante de cabelos
girassóis gémeos maduros no corpo do meio.
Punhal de luz de permeio
e no cabo da lâmina a pérola do umbigo.
Algas escorrendo ausência de Tejo nos dedos.
Cabo do mundo dos meus fascínios
dos meus delírios bem fundo que digo?
E o lugar dos joelhos hangares paralelos
insuspeitos de viagens rotuladas.
Ó gulas que as zonas do apetite jogam os dados
com prazer e êxtases estudados.
Outrora disseste rei terei
ó se minha arte tal fosse
porque leal e amor sou
homoalma inscrever-te no cosmos.
Minha mulher. O teu sexo de colher.
De sabor torrencialmente minha.
Beber-te moderno sumo do fruto.
Abundante por espasmos
de enormes segredos menstruados.
Sorver a plenos pulmões teu hálito mais secreto.
Esvair-me de concreto.
Ajoelho-me semeador ante a ternura
do cálice por ti aberto.
Desfoca ao longe a bebida
de já não vê-la de tão perto...
E o talhe de teus rins muito de Florença.
Pés de mármore de si rotativos a Sirius.
Ventre que em movimento flutua.
Fartura de lua.
Nádegas porcelares, carnagens lótus.
Aprumo de haste bambu ao Sol e a Marte.
Sexo de mim cação em teu sexo tubarão...
e o teu clito perdoa que não aparece!
Ó dor! Eis-te amor. Meu amor.
Nem Vénus. Nem de Cnido nem de Milo.
Muito branca muito morena e quente.
Muito querida e nua viva de frente.
É nesta indecisão de folhas caindo caindo
decisão de altas artes plantas plantas
a boca me ardendo nas tuas mamas tantas
soltando-se em alces fugindo fugindo.
As horas sendo em nossos cabelos.
Uma a uma. Um a um. Do tempo a Tagus.
Meus olhos égides tristezas minhas
que as não desejo aos relâmpagos.
Aqui a solução é não sabermos nadar
me chamas irmã dos espaços morenos.
Entre ondas de carne e unhas seremos
medo cisma orgasmo de podermos voar.
(Inédito)
In “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”
Selecção, prefácio e notas de Natália Correia
5ª Edição – 2008
Antígona – Frenesi
Dórdio Leal Guimarães
1938 – 1997
POEMA
Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada
alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler
alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios
alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar
In “Uma Faca nos Dentes”
Parceria A.M. Pereira
Livraria Editora, Lda.
António José Forte
1931 – 1988
ELEGIA
Dos teus olhos líquidos
irrompem musgos transparentes
onde existe um verso amarrotado
ao meio-dia. Um cinzeiro plástico,
resíduos da noite no óleo dos dedos.
Fica. Senta-te aqui na estrofe
desta ilha impar
num triângulo solitário.
Conversemos do curso que vais tirar,
da sede que mato em teus olhos,
de um animal atropelado,
do empréstimo de um livro, do sono
das aves para esconderem a morte.
Conversemos de tudo em vez de olharmos
as fontes secas e as folhas, o enxame
de lágrimas no meio da rua.
Não é meio-dia. Mentira
enquanto acreditávamos. Agora
só acredito em teu sonho. Gostava
de acariciar teus olhos líquidos
e alisar o verso amarrotado.
Mas perdes-te no voo sonoro e pequenino
do avião no horizonte. Eu queria
falar contigo. Olha
a minha voz sequiosa de ser ouvida
nas arestas do silêncio.
Eu queria era falar contigo.
Vivo num tapete de pregos em brasa
dentro do frio, numa lágrima cristalizada.
Vivo de não viver jamais.
Eu queria falar contigo.
A Mecânica do Sexxo XX
In “Poesia Digital – 7 Poetas dos Anos 80”
Campo das Letras
Luís Adriano Carlos
N. 1959
NOITE PERDIDA
Coitado do Rouxinol!
Passou a noite ao relento,
Do pôr ao nascer do Sol,
Sem descansar um momento,
Sempre a cantar, sem dormir,
Absorto no pensamento
De ver uma Rosa a abrir...
Coitado do Rouxinol!
Passou a noite ao relento,
Do pôr ao nascer do Sol,
Sempre a cantar, sem dormir...
Mas o mísero – coitado!
Cantando tão requebrado,
Com tal cuidado velou,
Que adormeceu de cansado,
E os olhos tristes cerrou
No minuto, no momento
Em que ao luar e ao relento
A Rosa desabrochou...
Coitado do Rouxinol!
Com tal cuidado velou
Do pôr ao nascer do Sol,
E tanto, tanto cantou,
A noite inteira ao relento,
Que de fadiga e tormento,
Sem descansar, sem dormir,
Fecha os olhos, perde o alento
No minuto, no momento
Em que a Rosa vai abrir...
Coitado do Rouxinol!
In “Leituras”
2º Tomo – 1ª Edição
Tip. Silvas, Lda.
António Feijó
1859 – 1917
O POETA E A MORTE
– Que sonhas tu, Poeta vagabundo?
“Acaso a construção de novo mundo?”
Olhei... Horror!..., a Morte estava ali...
E da cabeça aos pés, Jesus!, tremi:
Eu nunca vira espectro semelhante,
Um esqueleto assim, de mim diante.
– Não tremas... Deixa lá... Recobra a calma...
“É cedo ainda pra levar-te a alma!
“De mais a mais nem trago a foice adunca
“Que trago sempre e não perdoa nunca:
“Deixei-a nos Infernos, pra conserto,
“Pois amolada quer e o cabo aperto.
“Também, depois, em vindo lá da forja,
“Ai da seara humana, dessa corja!...”
Já num penedo vai sentar-se quando
Seus olhos, como brasas coruscando,
Me atraem para si... Lhe caio ao lado,
Autómato servil, inanimado...
– Põe-te a desejo... Vá!, despede o medo...
“Eu te prometo não levar tão cedo!”
– Ó Morte, irmã da Noite e da Tristeza,
Mas hás-de então levar-me?!
– Com certeza!
“A onda, que desfaz a rocha dura,
“Terá também um dia sepultura.”
E num sorriso cínico, de orgulho,
Rangeu as maxilas com barulho:
– Que pode a onda comparada a mim ?,
“O raio?, o vento?, quanto existe, enfim,
“Capaz de contrapor-se altivo e forte?...
“Um sopro que lhes dê, lhes dou a morte.”
– Se tem de ser, ó Morte, a despedida...,
Se tenho de morrer... que importa a vida?!
Nas veias sinto cólera selvagem,
Requintes de pirata na abordagem,
Um ódio sem igual, jamais sentido,
Capaz da voz mudar-me num rugido!
... Ó monstro!, bem maior que Satanás...
Detém-te aí! Cobarde, não te vás!
De mais eu sei o teu poder na Terra,
E o de teus filhos, Fome, Peste, Guerra...
De mais eu sei o mal que tendes feito!
E rias inda há pouco satisfeito...
Herodes! Tu nem poupas as crianças...
Que mal te fazem, para tais vinganças?!
Estoira a Morte a rir, num rir cruel,
O rir, talvez, da cobra-cascavel...
A rir, a rir, ela estremece tanto
Que até lhe cai do ombro o negro manto
(No chão onde tombou, gelado crepe,
Jamais erva cresceu – tornou-se estepe!).
Após se rir, com ar de quem não pensa,
Magnânima também, vingar a ofensa,
Desprende a voz:
– Poeta visionário
“Tens de levar a cruz ao teu calvário
“E, lá, de Jesus Cristo à semelhança,
“Serei Longuinhos a espetar-te a lança!
“Quanto no mundo existe, vive, sente,
“Há-de sofrer o espinho de meu dente!
“O ferro, o próprio ferro se oxida:
“Sou eu, ferrugem, que lhe tiro a vida.
“Meu pobre sonhador! Porque deliras?
“Blasfemas... Nada mais. Acalma as iras.
“É certo que sou má e que sou dura
“Mas só, vê tu!, para vos dar ventura:
“O mundo sem a morte o que seria?
“Hospício de macróbios hoje em dia,
“Macróbios, sim, antediluvianos
“Com mais de mil milhões de negros anos...
“E exércitos de reis, com seus vassalos,
“Como podia a terra sustentá-los?,
“Como podia a terra em si contê-los?
“Nem juntos, juntos, como os teus cabelos...
“Se os deuses destronei dos velhos povos
“(E só por dar lugar aos deuses novos)
“Com mais justa razão, justa e mais forte,
“Tereis, sem excepção, a mesma sorte!
“Que, mesmo assim, vê bem!, os homens são
“Feras cruéis, com uso da razão...
“Se o mundo é todo horror, pirataria,
“Sem mim, travão e algoz, que não seria?!...
“Embora me pagueis com ódio fundo,
“Um mal eu sou que dá remédio ao mundo.”
As órbitas do crânio em mim cravadas,
De novo ri, mais forte, às gargalhadas.
E, súbito, acordei, horrorizado...
– Que pena a Morte não me ter levado!
In “Cruz” – 1961
Gentil de Valadares
1916 – 2006
RECÔNDITAS PALAVRAS
Inquietam-me as dedadas
de deus rente à raiz da carne, ao indeciso
equilíbrio da alma
na balança, à cicatriz
azul do céu sobre o destino.
O mar pneumático, ao sabor
do qual contra os sentidos se nos fazem
e desfazem as ávidas lembranças,
assalta-me os sentidos, tenebrosas
crateras escavadas
no espírito e através
das quais, incandescentes, as imagens
do mundo sobre ele próprio se derramam
como uma lava espessa, esses sentidos
que, como aéreos
estigmas, nos imprimem
na carne a cicatriz do céu, a indecisa
maneira de as imagens
do mundo se guindarem
mais alto do que a alma ou o alento
de quem dentro de nós
aviva a sua chama. O que nos sai
do coração vem a ferver.
A carne, ao rés
da qual o céu se encurva, báscula
que deus deixou nos arredores
dum qualquer lugarejo
a encher-se de ferrugem, cicatriz
pesada, combustível, com raiz
nas mais profundas trevas, a carne âncora
submersa no destino, ergue-se a pique
de novo onde as lembranças
se fazem e desfazem
com todo o azul do céu
lá dentro a procurar rompê-la.
Sentados no convés, como se fosse
já noite e nos soubesse
o pão ao ranço da memória, contemplamos
os rudes marinheiros.
Depois que pela encosta procurámos
em vão uma escada de que o último
degrau fosse já dentro da memória,
suspenso na memória,
desfaz-se-nos dos ossos
a carne, com o seu quê de lírico e festivo,
em áreas portuárias onde o mar
nos sai do coração para galgar o molhe,
e, agora que começam
os anos a pesar
mais para trás que para a frente, acodem-nos
recônditas palavras aos ouvidos:
«Fecharam-se-te os olhos e eu fiquei de fora»,
«Nas tuas mãos começa o precipício».
Vulcão
In “Poesia Completa 1979-1994”
Publicações Dom Quixote
Luís Miguel Nava
1957 – 1995
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