SONETO JÁ ANTIGO
Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não o sintas, tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de
Londres p’ra Iorque, onde nasceste (dizes…
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,
embora não o saibas, que morri.
mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará… Depois vai dar
a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!
Poesias de Álvaro Campos
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
1890 – 1935
O MENINO DA SUA MÃE
No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe."
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Cancioneiro
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
1888 – 1935
PREFIRO ROSAS
Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.
Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo de indif’rença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.
Odes de Ricardo Reis
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Ricardo Reis/Fernando Pessoa
1887 – 1935
SE EU MORRER NOVO
Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva –
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão –
Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
Poemas Inconjuntos
Poemas de Alberto Caeiro
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Alberto Caeiro/Fernando Pessoa
1889 – 1915
TRILA NA NOITE UMA FLAUTA
Trila na noite uma flauta. É de algum
Pastor? Que importa? Perdida
Série de notas vaga e sem sentido nenhum,
Como a vida.
Sem nexo ou princípio ou fim ondeia
A ária alada.
Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia
De não ser nada!
Não há nexo ou fio por que se lembre aquela
Ária, ao parar;
E já ao ouvi-la sofro a saudade dela
E o quando cessar.
Cancioneiro
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
1888 – 1935
MESTRE
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.
Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,
Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
de Natureza...
À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.
Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
Odes de Ricardo Reis
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Ricardo Reis/Fernando Pessoa
1887 – 1935
AH UM SONETO!!!
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas – esta é boa! – era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...
Poesias de Álvaro Campos
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética” – 3ª. Edição
Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Álvaro de Campos/Fernando Pessoa
1890 – 1935
ACONTECEU-ME DO ALTO DO INFINITO
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que é meu.
Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...
Passos da Cruz – Cancioneiro
In “Fernando Pessoa – Antologia Poética”
3ª. Edição – Biblioteca Ulisses de Autores Portugueses
Editora Ulisses
Fernando Pessoa
1888 – 1935
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