CHUVOSO MAIO!
Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade ...
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda
que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa...
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa...
e sempre assim!
Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água...
(sob o pseudónimo de João Falco)
Outono havias de vir latente triste
In “Poesia – I” – Obras de Irene Lisboa
Prefácio e notas de Paula Morão
Editorial Presença
Irene Lisboa
1892 – 1958
QUEM
Quem empunhou o machado
e cortou a flor de lume?
Quem fez o estranho noivado
das estrelas com o estrume?
Quem nada na maré falsa
com braços de maré cheia?
Quem quer a fome descalça
por causa de um pé de meia?
Quem traz a vida aos soluços
no gume de uma navalha?
Quem põe um homem de bruços
por dá cá aquela palha?
Quem da vida faz um fardo
e da mentira o exemplo?
Quem da rosa faz um cardo
no altar do nosso templo?
Quem é que se diz profeta
e é traidor na sua terra?
Quem é que fez da caneta
uma arma em pé de guerra?
Quem é que vende o meu povo
por interesse nacional?
Quem fez de Colombo um ovo
e descobriu Portugal?
Quem pretende que eu me cale
porque a poesia é perigosa?
Quem é que quer afinal
uma canção cor-de-rosa?
In "125 Poemas – Antologia Poética"
Litexa Editora – Lisboa
Joaquim Pessoa
N. 1948
QUEIXA DAS ALMAS JOVENS CENSURADAS
Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.
Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.
Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.
Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.
Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.
Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.
Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.
Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.
In “Poesia Completa”
Publicações Dom Quixote
Natália Correia
1923 – 1993
CANÇÃO
Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha arder
venha arder em nosso peito
E saiam também os rios
da paciência da terra
É no mar que a aventura
tem as margens que merece
E saiam todos os sóis
que apodreceram no céu
dos que não quiseram ver
- mas que saiam de joelhos
E das mãos que saiam gestos
de pura transformação
Entre o real e o sonho
seremos nós a vertigem
In “Poesias Completas”
Assírio & Alvim
Alexandre O'Neill
1924 – 1986
MISERIA OCCULTA
Bate nos vidros a aurora,
Vem depois a noute escura;
E o pobre astro que ali móra,
Não abandona a costura!
Para uns a vida é d'abrolhos!
Para outros mouta de lyrios!
Bem o revelam seus olhos,
Pisados pelos martyrios!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que gaba o velludo
D'aquelles olhos honestos!...
Ninguem seus olhos brilhantes
Descobre n'essas alturas...
E aquellas formas tão puras,
E aquellas mãos elegantes!
Sempre á costura inclinada!
Morra o sol ou surja a lua
Nunca vi descer á rua
Aquella loura encantada!
Aquelle lyrio dobrado
Por que assim vive escondido!
Eu bem sei! – não tem calçado!
E é muito usado o vestido!
Por isso não tem porvir
Morrerá virgem e nova,
E aguarda-a bem cedo a cova...
Que eu bem a ouço tossir!
Miseria afugenta tudo!
Miseria tem dons funestos!
Quem é que gaba o velludo
D'aquelles olhos honestos!
Pobre flor desfalecida
Tão nova e ainda em botão!
Como teve estreita a vida,
Terá estreito o caixão!
In “Claridades do Sul” – 1875
Braz Pinheiro – Editor
Praça d'Alegria 73 – Lisboa
Gomes Leal
1848 – 1921
MANTEM A GRAFIA ORIGINAL
UMA MULHER QUASE NOVA…
Uma mulher quase nova
com um vestido quase branco
numa tarde quase clara
com os olhos quase secos
vem e quase estende os dedos
ao sonho quase possível
quase fresca se liberta
do desespero quase morto
quase harmónica corrida
enche o espaço quase alegre
de cabelos quase soltos
transparente quase solta
o riso quase bastante
quase músculo florido
deste instante quase novo
quase vivo quase agora
(O Riso Dissonante)
In “Poesia Incompleta”
Publicações Europa-América
Mário Dionísio
1916 – 1993
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
In “Boca Bilingue”
Editorial Presença
Ruy Belo
1933 – 1978
O DILÚVIO
Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.
Pradarias, vergéis, hortos. vinhedos, matos,
tudo desapar'ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.
À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.
É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.
Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.
Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.
Raivoso, o touro estripa os míseros humanos
que o estorvam, ao correr em fuga desnorteada,
e pelo ar tenebroso as águias e os milhanos
fogem, com vivo horror, daquela estropeada.
Cresce a treva infernal nos cavos horizontes;
o oceano sobe e muge em raivas cavernosas,
e as ondas, a trepar pelos visos dos montes,
fazem de cada vez cem vítimas chorosas!
Os negros vagalhões, nos bosques mais cimeiros.
silvam e marram já, em golpes iracundos;
resplendem raios mil em rútilos chuveiros,
e os corvos, a grasnar, desolham moribundos.
Blasfémias, maldições elevam-se à porfia;
fustigado plo raio, aumenta o furacão;
cada ruga do mar acusa uma agonia,
cada bolha, ao estalar, solta uma imprecação.
Cresce n mar, sobe o mar... e traga, rudemente.
da m ais alta montanha o píncaro nevado.
e um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,
que envolve, ao despenhar-se, o último condenado.
Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:
e, levada plo fero e desabrido norte,
sua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,
que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...
Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!
No céu, o próprio Deus melancólico pasma...
E, pelos vagalhões acastelados, corre
a Arca de Noé, qual navio-fantasma...
In “Saudades do Céu” – 1899
Eugénio de Castro
1869 – 1944
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